Modernismo e androginia

Quando se estuda a história das artes visuais, especificamente modernismo brasileiro, o nome de Ismael Nery não é um dos mais populares. Ismael era pintor e desenhista, nasceu em Bélem no ano de 1900 e morreu no Rio de Janeiro em 1934, de tuberculose.

Esse esquecimento talvez tenha se dado pela morte precoce do artista, mas, segundo o curador Paulo Sérgio Duarte, deveu-se às escolhas estéticas e políticas de sua arte. Ismael Nery não se filiou ativamente a nenhum grupo e tinha trânsito por vários agrupamentos estéticos e artísticos. Contudo, o principal motivo para décadas de esquecimento foi o fato de não ter adotado a missão que os intelectuais se deram no início do século XX: construir a identidade nacional brasileira. As obras de Ismael Nery rumaram por outras temáticas contemporâneas dos anos iniciais do século passado. Temas bem pessoais e pouco afeitos aos problemas de identidade cultural.

Ismael Nery teve sua formação na Escola Nacional de Belas Artes e na década de 1920 viajou duas vezes para a França, onde estabeleceu contatos com artistas cubistas e surrealistas, notadamente Marc Chagall. Uma característica marcante da personalidade de Ismael Nery era o seu catolicismo praticante, que lhe rendia críticas e anedotas pelo lado de Oswald de Andrade, bem como alinhamento político com intelectuais católicos, como Murilo Mendes e Tristão de Ataíde.

Ismael Nery não era só um artista das artes visuais, mas também um poeta e se dedicou à conjugação dessas duas expressões artísticas. Por fim, era altamente perfeccionista e jogava poemas e desenhos fora, demonstrando certa inquietude.

Em relação à obra do artista, destaca-se o tratamento que Nery dava às figuras masculina e feminina em alguns de seus quadros. Na Obra Autorretrato com Adalgisa, percebe-se o rosto de duas figuras com cabelos à Chanel. Em primeiro plano, vestindo uma blusa escura, há um rosto muito magro. De certo, todas as outras qualificações dessas figuras são similares. Ambas têm os olhos fechados e maquiados, lábios bem marcados por batom, narizes aquilinos, pescoços alongados e queixos geometrizados. Assim, não se consegue definir o que era para ser a figura masculina (Ismael Nery) e o que era para ser a figura feminina (Adalgisa Nery), de sua esposa.

Autorretrato com Adalgisa, Ismael Nery.

O tema da androginia toma forma na obra Casal II, um guache sobre papel, em cores escuras, em que se observa um casal supostamente em pé se abraçando, quase que lateralmente. Ao observar os membros da pessoa à esquerda da composição, nota-se uma diferença expressiva no formato dos dedos das mãos. Além disso, é possível observar um aspecto trançado dos cabelos. Já na figura à direita da composição, percebe-se o tronco e os braços mais volumosos. O braço direito ficou nas costas da primeira figura e não é pintado, por sua vez o braço esquerdo, mais forte, está sobre o ventre dela. Por nenhuma das características físicas dessa obra conseguimos perceber qual o sexo dessas pessoas. Infere-se que estejam nuas, contudo, os orgãos sexuais aparentes não se parecem anatomicamente e nem metaforicamente com um pênis ou uma vagina: são iguais.

Casal II, Ismael Nery.

Obras assim, realizadas nos anos 1920 ou 1930 por um artista católico praticante, mostram a originalidade e a percepção sagaz de Ismael Nery. Talvez por isso só tenha sido recuperado como um artista importante do modernismo brasileiro durante a 8ª Bienal de Arte de São Paulo de 1965.

Sobre o autor:       

Alexandre Ventura é professor de História da Arte no Cefart – FCS, graduado em História pela UFMG e mestre em História Social pela PUC-SP.

Referências:

Imagens:

Figura 1 – NERY, Ismael. Autorretrato com Adalgisa. Óleo sobre tela, 24,80 cm X 26,90 cm, [S.D.] coleção particular. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra1857/auto-retrato-com-adalgisa>. Acesso em: 28 de set. 2020. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7

Figura 2 – NERY, Ismael. CASAL II. Guache sobre papel. 21 cm X 13 cm, [S.D.], coleção particular. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra63991/casal-ii>. Acesso em: 28 de set. 2020. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7

Textos:

CHIARELLI, Tadeu. Às Margens do modernismo. In: CHIARELLI, Tadeu. Arte internacional brasileira. São Paulo: Lemos, 1999. 311 p., il. color. pp.47-59.

NERY, Ismael. Ismael Nery 100 anos: a poética de um mito. Versão em inglês Carolyn Brisset; apresentação Celita Procópio de Carvalho; apresentação Walter Nunes de Vasconcelos Junior. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2000. 128 p., il. p&b. color.

PEDROSA, Mário. Ismael Nery, um encontro na geração. In: PEDROSA, Mário. Acadêmicos e modernos: textos escolhidos III. Organização Otília Beatriz Fiori Arantes. São Paulo: Edusp, 1998. pp.196- 201.