O que fazer com a imagem de Tiradentes?

Durante as pesquisas para a escrita do texto O que fazer com as estátuas dos bandeirantes?, percebi que havia muito material nas redes sociais debatendo as obras de Júlio Guerra e Victor Brecheret em homenagem aos sertanistas paulistas dos séculos XVII e XVIII. Porém, em apenas um texto, havia menção a outra figura heróica, consagrada pela história oficial da república. Nesses meses de #BlackLivesMatter, somente Wesley Galzo escreveu: “Tiradentes é conhecido como um dos maiores heróis nacionais, líder da Inconfidência Mineira foi enforcado. No entanto, Joaquim José da Silva Xavier era dono de 6 escravos em 1792, quando foi executado. Sua estátua está localizada em frente ao prédio da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), local onde funcionava a Cadeia Velha em que Tiradentes ficou preso. A estátua faz alusão a um ‘cristo cívico’ por sua contribuição durante a vida (negrito do autor). Tiradentes tem uma gama de homenagens bem ampla, variando de cidades, de escolas, de medalhas, de comendas, entre outras. Em uma rápida busca no Google Maps por praças com o nome de Tiradentes, apenas em Minas Gerais, são seis, ou seja, essa figura virou uma imagem quase que mitológica dentro do nosso processo histórico. Contudo, nos cabe uma pergunta: como Tiradentes se transformou em um herói nacional?

A resposta não é possível sem a corroboração de análises das obras criadas sobre Joaquim José da Silva Xavier, ainda no final do século XIX. Basicamente, como mostra o professor José Murilo de Carvalho, foi realização dos republicanos, que necessitavam construir um mito para legitimar a recém-inaugurada República. O governo precisava se aproximar da população, então criou-se ou reavivou-se um herói com características populares.

Em primeiro lugar, o que foi a Inconfidência? Joaquim José da Silva Xavier era um dos membros de um movimento de independência, denominado pela coroa portuguesa de Inconfidência Mineira. Decodificando esse nome seria como: traidores da coroa. Organizado por grandes mineradores durante o período colonial e inspirado no movimento da independência das Treze Colônias Inglesas da América do Norte, foi iniciado no ano de 1788 e debelado um ano depois. Nunca agiram, apesar de terem criado os planos para a revolta. Por ser um movimento de elite, tinha como principal interesse livrar-se das altas taxações de impostos sobre o ouro, por conseguinte, a separação definitiva da coroa portuguesa e o livre comércio.

Muito provavelmente, Tiradentes foi um membro de certa relevância, mas jamais um líder, ou seja, não tinha posses para ser um chefe econômico e não tinha desenvolvimento intelectual ou vivência filosófica para ser um orientador político do movimento. Pelos documentos e as inferências que historiadores fizeram sobre o movimento da Inconfidência Mineira e o alferes Joaquim José da Silva Xavier, sabe-se que ele era um militar carismático e exaltado em seus ideais. Era um membro do grupo social médio. Contudo, se comparado com os líderes econômicos do movimento, talvez ele fosse um dos mais pobres. Tiradentes foi executado no dia 21 de abril de 1792 no Rio de Janeiro, 2 anos e 11 meses após a sua prisão.

A imagem de líder foi construída por necessidade de valorizar a imagem dos militares do exército, sobretudo como novo grupo político e republicano. Por sua vez, simultaneamente, desvalorizar e desgastar a imagem da monarquia e do Imperador. Assim, nesse jogo político, se esconde o passado escravocrata de Joaquim José da Silva Xavier e se constrói a sua face como a de um novo Jesus.

Há várias imagens produzidas por um grande número de artistas, utilizando diversas linguagens, como pintura a óleo sobre tela, gravura, escultura, entre outras. As imagens têm sempre a mesma linha, criada por Décio Villares: um homem jovem, magro, alto, com barba e cabelos longos e olhos escuros, em um rosto tranquilo diante da morte, uma postura corporal altiva e segura, estabelecendo como referência a imagem de Jesus Cristo. Em tempo, assim como de Tiradentes, não há uma descrição física de Jesus.

Em Tiradentes Esquartejado, de Pedro Américo, pintada em 1893, com um elevado tom dramático, vê-se um Rio de Janeiro quase imperceptível e rural. A cena de um corpo masculino, jovem, magro e esquartejado, porém surpreendentemente limpo. Sem nenhuma sujeira ou encoberto de sangue, apenas alguns sinais de sangue, bem como um pouco de sujeira no pé direito, fazendo com que o observador crie uma inferência com o sacrifício de Cristo. Veem-se ao lado da cabeça decepada, sobre um pano branco, um crucifixo, os grilhões e a corda da forca. Há pouco sangue na composição, realçado pelo tecido branco e pela madeira clara da forca. A dureza da pena capital imposta por D. Maria I é materializada pela forca em si e pelo conjunto grotesco de pernas partidas, separadas do tronco, enrolado em um pano azul ensanguentado. Por fim, o último elemento cristão da obra é composto pelo braço direito caído, similar ao de Jesus da Pietà de Michelangelo Buonarroti. A barba e o cabelo do rosto têm um tom avermelhado, já os pelos do tronco e da axila são escuros.

 

Figura 1: Tiradentes Esquartejado (Tiradentes Suplicado), Pedro Américo, 1893.

 

Oito anos depois, Pedro Américo volta a repetir o tema, porém, dessa vez, não retrata Tiradentes, mas o próprio Jesus Cristo morto. A semelhança física entre as duas representações é impressionante, para não dizer que é a mesma pessoa. A cor do cabelo e da barba, um castanho avermelhado; o corpo jovem e magro; o rosto calmo, que parece repousar, não transmite a sensação de morte e também não mostra a dor do sofrimento. Assim, o único traço de lembrança do calvário nessa pintura está na testa ferida da coroa de espinhos.

 

Figura 2: Cristo Morto, Pedro Américo, 1901.

 

Politicamente usar as artes visuais para construir e consolidar a imagem de um militar republicano como um homem calmo, forte e cristão em um país onde o catolicismo era a religião oficial, foi uma jogada muito bem pensada e executada, pois impediu a rejeição do herói Tiradentes e da República que ele representava.

Rejeição evitada, havia agora a necessidade de construir a popularidade de Tiradentes. Nesse sentido, a estátua da Praça – de mesmo nome desse republicano  presente no cruzamento das Avenidas Afonso Pena e Brasil, em Belo Horizonte, mostra vários caminhos para a ressignificação da imagem de Tiradentes.

 

Figura 3: Estátua de Tiradentes, Antônio van der Weill, 1963.

 

Desde 2008, de tempos em tempos, essa estátua sofre intervenções durante protestos e manifestações diversas. Por exemplo, em 25 de março de 2008, a estátua recebeu uma camisa do Atlético Mineiro, durante a comemoração do centenário do clube. Na página da Wikipédia, há relatos de protestos. “(…) Em 2010, feita por estudantes, que com humor reclamavam da poluição visual feita pelos políticos com uso de ‘cavaletes’ de propaganda ou a feita por empresários contra o excessivo número de impostos do Brasil, levando o ‘livro’ de sete toneladas e meia contendo parte das leis tributárias do país, e várias forcas foram armadas, representando cada uma delas um imposto que é cobrado dos brasileiros”. Há poucos dias, recebeu jaleco e máscara para homenagear os profissionais de saúde na luta contra a COVID-19 e uma faixa no pedestal contra o racismo. Talvez seja por isso que não houve várias vozes pedindo as retiradas e substituição de homenagens a Tiradentes, porque as imagens que a sociedade construiu dele são fluídas e se adequam a qualquer ideologia. Basta lembrar que Cândido Portinari tem na cidade de Belo Horizonte dois grandes painéis, em que a Inconfidência Mineira é abordada em uma perspectiva da esquerda.

Para concluir o debate, temos de lembrar que a cidade deve decidir o que fazer com essas homenagens a esses escravocratas. Sobre a figura de Tiradentes, lanço mão das palavras do professor Ilmar Rohloff de Mattos “Nem bandido, nem anti-herói, nem herói – porque uma sociedade justa prescinde de tais imagens”.

 

Sobre o autor:

Alexandre Ventura é professor de História da Arte no Cefart – FCS, graduado em História pela UFMG e mestre em História Social pela PUC-SP.

 

Referências:

Imagens

Figura ilustrativa – Disponível em: ˂http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra3468/tiradentes˃ Acesso em: 09/07/2020.

Figura 1 – Disponível em: ˂https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Tiradentes_quartered_(Tiradentes_escuartejado)_by_Pedro_Am%C3%A9rico_1893.jpg˃ Acesso em: 09/07/2020.

Figura 2 – Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Pedro_Am%C3%A9rico_-_Cristo_Morto.jpg> Acesso em: 19/06/2020.

Figura 3 – <https://pt.wikipedia.org/wiki/Pra%C3%A7a_Tiradentes_(Belo_Horizonte)> Disponível em: ˂https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2020/06/12/covid-19-estatua-de-tiradentes-ganha-mascara-e-jaleco-em-homenagem-a-profissionais-que-atuam-no-combate-a-doenca.ghtml˃ Acesso em: 09/07/2020.

Textos

BOM DIA MINAS. Covid-19: estátua de Tiradentes ganha máscara e jaleco em homenagem a profissionais que atuam no combate à doença. Faixa Contra o Racismo foi colocada no local. Belo Horizonte, G1 Portal de Notícias, 12 de junho de 2020. Disponível em: ˂https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2020/06/12/covid-19-estatua-de-tiradentes-ganha-mascara-e-jaleco-em-homenagem-a-profissionais-que-atuam-no-combate-a-doenca.ghtml> Acesso em: 09/07/2020.

CALLEGARI, Jeanne. São Tiradentes. In: Aventuras na História, SP, edição 44, p. 14-15, abr. 2007.

CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo, Cia das Letras, 1987.

CARVALHO, José Murilo de.  A formação das almas: imaginário da República no Brasil. São Paulo, Cia das Letras, 1996.

GALZO, Weslley. Homenagem ao opressor? Veja 5 estátuas que retratam racistas no Brasil. Disponível em: ˂https://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2020-06-11/homenagem-ao-opressor-veja-5-estatuas-que-retratam-racistas-no-brasil.html˃ Acesso em: 19/06/2020.

SAKAMOTO. Leonardo. Ao invés de pichar, que tal remover as homenagens aos bandeirantes em SP. Disponível em: ˂https://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2016/09/30/ao-inves-de-pichar-que-tal-remover-as-homenagens-aos-bandeirantes-em-sp/?cmpid=copiaecola˃ Acesso em: 21/06/2020.

SÃO PAULO (cidade). Secretaria Municipal de Cultura. Departamento do Patrimônio Histórico. Pátria Amada Esquartejada. São Paulo: DPH, 1992.