O que fazer com as estátuas de Bandeirantes?

Neste mês de junho de 2020, houve vários movimentos e passeatas de protesto em oposição ao racismo, intitulado black lives matter (vidas negras importam), #BlackLivesMatter. O movimento, surgido em 2013, ganhou novo espaço internacional a partir de protestos contra o homicídio de George Floyd, afro-americano, em Minneapolis, e tem gerado “ataques” a estátuas que representam símbolos escravocratas pelo mundo, variando de pichações até o arremesso de uma escultura em um rio na Inglaterra.

No Brasil, o movimento incorporou pautas próprias como as mortes violentas de dois jovens negros. A primeira morte foi o homicídio de João Pedro Matos Pinto, um garoto de 14 anos, durante uma ação policial em uma favela no munícipio de São Gonçalo, estado do Rio de Janeiro, no dia 18 de maio. A segunda se tratava do óbito de Miguel Otávio Souza da Silva, de 5 anos de idade, no dia 2 de junho, em decorrência de uma queda do nono andar de um prédio em Recife. Somado a manifestações populares multifacetadas, como atos antifacistas e a favor do isolamento social, ocorridas nos meses de maio e junho, ressurgiu um debate de natureza estética e política em relação à estátua de Borba Gato e ao Monumento às Bandeiras, que têm sido alvo de pesadas críticas.

Para conseguirmos analisar essas estátuas de bandeirantes, é necessário partir de três pressupostos. O primeiro é ético, que todo ser humano tem o direito à vida e a um quotidiano não violento para se desenvolver como pessoa e cidadão autônomo.

O segundo pressuposto diz respeito ao alerta do professor Florestan Fernandes que “a democracia só será uma realidade quando houver, de fato, igualdade racial no Brasil e o negro [indígena] não sofrer nenhuma espécie de discriminação, de preconceito, de estigmatização e de segregação, seja em termos de classe, seja em termos de raça”.

O último pressuposto é de caráter histórico, pois a partir dos anos finais do século XIX e início do século XX houve um movimento político das elites oligárquicas cafeeiras paulistas de incorporar a figura do bandeirante ao bairrismo e, por conseguinte, à nacionalidade brasileira. Entende-se por bandeirante o homem que viveu nos séculos XVII e XVIII, originário da capitania de São Vicente, filho de pai português e mãe indígena. Seu objetivo de vida era primeiramente descobrir alguma jazida de metal precioso (ouro, diamante, esmeralda, entre outros). Caso isso não ocorresse, partia para a preação (captura de indígenas para serem explorados em trabalho escravo) com a utilização de autóctones como mão de obra, o que era proibido pela coroa portuguesa.

Como aponta Katia Abud: “(…) Entre 1890 e 1930, que a figura do bandeirante foi resgatada como símbolo, pois ao mesmo tempo em que denunciava as qualidades de arrojo, progresso e riqueza que São Paulo possuía, representava o processo de integração territorial que dera sentido à unidade nacional. Como símbolo, o bandeirante representava, de um lado a lealdade ao estado e de outro a lealdade à nação, e permitia também com significação que os estudos históricos do período lhe deram, que uma parcela da população, a dos imigrantes, se integrassem emocionalmente a São Paulo, na medida em que uma das vertentes, dos estudos sobre o bandeirismo, deu ênfase à miscigenação”.

Assim, compreende-se o motivo de encontrarmos em várias cidades brasileiras, em quase todos os estados, as mais diversas homenagens aos bandeirantes. Não só em estátuas, como veremos aqui, mas também em nomes de escolas, bairros, ruas, estradas, avenidas, entre outros.

Duas dessas estátuas, localizadas em São Paulo, são alvos de protestos e de debates há anos: a estátua de Borba Gato, de Júlio Guerra, instalada na Avenida Santo Amaro, e o Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret, localizado na Praça Armando Salles de Oliveira, no Ibirapuera. Ambas são frutos das comemorações do aniversário de quatrocentos anos da cidade de São Paulo, contexto que deve ser levado em consideração para compreender essas homenagens.

Sobre as estátuas é possível questionar: Quais são suas características estéticas? Existe a necessidade de tais homenagens? O que fazer com elas?

A estátua de Borba Gato feita por Júlio Guerra (1912-2001) é bem simples de ser descrita: trata-se de um homem branco, com vestes de explorador europeu do século XIX, segurando uma arma de fogo na mão esquerda. Ela foi inaugurada em 1963, ano em que a cidade de São Paulo sediou os Jogos Panamericanos.

 

Figura 1: Estátua de Borba Gato.

 

Ao longo desses 57 anos, a estátua de Manuel de Borba Gato (1649 – 1718) serviu de ponto de referência para localização, por se destacar no cenário urbano. Alvo de polêmicas, alguns a consideram feia, outros manifestam aceitação dessa figura imponente.

Em 1985, durante a tramitação da emenda Dante de Oliveira (Diretas Já!), a estátua foi usada como um objeto de propaganda da campanha. A imagem não tem uma boa resolução, por isso o texto não é totalmente legível, mas é fácil ler os dizeres “Diretas Já!”, bem como ver um pequeno grupo de pessoas aos seus pés, admirando e debatendo o cartaz.

 

Figura 2: Estátua de Borba Gato, Campanha das “Diretas Já!”.

 

Nessas últimas semanas, nas redes sociais, um chargista fez uma paráfrase visual com a imagem de 1985, substituindo o cartaz por um texto que denuncia os intuitos das bandeiras do período colonial e apresentando a releitura dessa obra como uma possibilidade de ressignificação. Cabem aqui duas perguntas: qual ressignificação? Qual intervenção?

 

Figura 3: Charge da Estátua de Borba Gato.

 

Outra escultura em debate há tempos é o Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret (1894 – 1955). A obra foi encomendada em 1921, durante a onda nacionalista da comemoração do centenário da independência, ficando pronta apenas em 1953. O artista responsável pelo monumento, Victor Brecheret, foi um expoente do modernismo brasileiro, tendo construído uma carreira sólida no Brasil e obtendo significativo reconhecimento internacional.

O Monumento às Bandeiras foi esculpido em granito, ao todo são 240 blocos com milhares de toneladas de peso, distribuídos em cerca de pouco mais de quarenta metros de comprimento, por onze de altura e oito de largura, destacando-se na paisagem urbana. A localização do Monumento às Bandeiras é privilegiada, pois está em um espaço de lazer e esportes da cidade de São Paulo.

A obra ilustra uma bandeira: homens, mulheres, crianças, agressores e capturados. As emoções não são exageradas. Há também um barco fazendo alusão às monções (bandeiras em direção ao Mato Grosso e Góias, que usavam os rios como caminhos para prospecção de ouro).

 

Figura 4: Monumento às Bandeiras (visão lateral).

 

Os corpos dos indígenas e dos bandeirantes são colossais, dá-se destaque aos bandeirantes, aos cavaleiros e a uma família de indígenas capturados, que aparece em uma de suas laterais.

 

Figura 5: Família, detalhe lateral, Monumento às Bandeiras.

 

No final da escultura há um barco sendo empurrado pelas diferentes etnias que compõem o Brasil e seus mestiços. Aqui o monumento tem uma falha de execução técnica apontada pela sabedoria popular, pois os homens do lado da canoa fazem força para puxar a corda, contudo o cabo não tenciona. Nasce assim um apelido para a escultura: “Empurra-empurra” ou “Deixa-Que-Eu-Empurro”.

 

Figura 6: Detalhe lateral, Monumento às Bandeiras, (Empurra-empurra ou Deixa-Que-Eu-Empurro).

 

O discurso nacionalista alcança o seu máximo quando, em um entalhe lateral, lê-se:

 

“Glória aos Heróis que traçaram

O nosso destino na geografia

Do mundo livre,

Sem eles o Brasil não seria grande como é.”

(Cassiano Ricardo)

 

E na face lateral direita do pedestal, lê-se:

 

“Brandiram achas e empurraram quilhas

Vergando a vertical de Tordesilhas.”

(Guilherme de Almeida)

 

Esses são versos de outros dois expoentes do modernismo tecendo elogios às atitudes dos sertanistas. Assim, tem-se a construção do mito bandeirante, responsável pela integração nacional e pela miscigenação do país.

Os valores da integração nacional são muito caros à elite política do Brasil, pois estavam presentes desde o movimento de Independência em 1822, possibilitando assim outra marca do nosso patriotismo, que é o tamanho continental do país.

Cabe-nos agora uma pergunta: Por que a sociedade brasileira continua a homenagear homens da capitania de São Vicente, de um passado violento, tão distante, que se dedicaram à preação e mineração de pedras preciosas nos séculos XVII e XVIII?

A resposta está nas duas obras de arte analisadas aqui. A construção de imagem do bandeirante como desbravador e responsável pela integração nacional e étnica do país continua a ser muito valorizada por algumas pessoas da nossa sociedade, notadamente as elites econômicas, em detrimento do sofrimento, das mortes, do esquecimento e da perseguição da minoria indígena.

O Monumento às Bandeiras e a Estátua de Borba Gato têm sido alvos de ataques recorrentes desde o início do século XXI. Em relação à estátua do Ibirapuera, houve três atos de pichação, o último em 2016. Surge com isso um novo ponto de polêmica, pois para limpar o monumento a prefeitura gasta uma soma financeira elevada.

A cidade tem esse problema e, dessa forma, sua coletividade deve resolvê-lo. O que fazer com essas obras? Lembrando que em uma sociedade do século XXI não há lugar para homenagear atos violentos; a obra de arte não pode ser depredada, mas debatida. A título de exemplo, os quadros da elite nazista e suas estátuas não foram destruídos na Alemanha. Foram retirados dos lugares públicos, recolhidos em reservas técnicas, para serem estudados. A população da cidade deve ser orientada por arte-educadores, antropólogos, historiadores, filósofos, em uma conduta interdisciplinar sobre as possibilidades de ressignificação das obras e de como fazê-la. Por fim, uma sociedade democrática debate abertamente os seus problemas.

 

Alexandre Ventura é professor de História da Arte no Cefart – FCS, graduado em História pela UFMG e mestre em História Social pela PUC-SP.

 

Referências:

Imagens

Figura 1 – GUERRA, Júlio. Estátua enorme de Borba Gato na Avenida Santo Amaro, argamassa, trilhos, pedras, revestida de pedras coloridas de basalto e mármore.  São Paulo, 22 de setembro de 1963. Disponível em:  https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Borbagatodiretasj%C3%A1.jpg. Acesso em: 19/06/2020.

Figura 2 – GUERRA, Júlio. Estátua enorme de Borba Gato na Avenida Santo Amaro, argamassa, trilhos, pedras, revestida de pedras coloridas de basalto e mármore.  São Paulo, 22 de setembro de 1963. Foto Autor desconhecido. Campanha das Diretas Já no Borba Gato (1985). São Paulo In Foco/ALESP, 16 de agosto de 2017, 11h28min. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Borbagatodiretasj%C3%A1.jpg. Acesso em: 19/06/2020.

Figura 3 – Autor desconhecido. Charge Estátua de Borba Gato. [S.L.], [S.D.], [S.T.], Disponível em: https://www.facebook.com/photo?fbid=2630708860503464&set=a.1386086721632357. Acesso em: 19/06/2020.

Figura 4 – BRECHERET, Victor. Monumento às Bandeiras. Escultura em granito, 11 m X 8,4 m X 43,8 m, São Paulo, 1954. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Monumento_%C3%A0s_Bandeiras. Acesso em:19/06/2020.

Figura 5 – BRECHERET, Victor. Família, Detalhe lateral, Monumento às Bandeiras [família]. In: Monumento às Bandeiras. Escultura em granito, 11 m X 8,4 m X 43,8 m, São Paulo, 1954. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Monumento_%C3%A0s_Bandeiras. Acesso em: 19/06/2020.

Figura 6 – BRECHERET, Victor. Família, Detalhe lateral, Monumento às Bandeiras [Empurra-empurra ou Deixa-Que-Eu-Empurro]. In: Monumento às Bandeiras. Escultura em granito, 11 metros X 8,4 metros X 43,8 metros, São Paulo, 1954. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Monumento_%C3%A0s_Bandeiras. Acesso em: 19/06/2020.

Textos

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DE LUCA, T. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação. SP: Fundação Editora UNESP, 1999.

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