Quando uma pandemia pega a arte

As pandemias, assim como a que vivemos hoje com o Coronavírus (Covid-19), não são novidade na história da humanidade. Elas colocam em risco a saúde pública, a economia e a ordem natural das coisas. Já passamos pela Peste Negra, pela Tuberculose, pela Cólera, pela Febre Amarela, pela AIDS e outros surtos epidêmicos que adoeceram e mataram milhares de pessoas pelo mundo. As artes, em especial a pintura, sempre estiveram presentes nesses momentos. Conseguimos, por exemplo, ter uma dimensão da atmosfera desesperadora causada pela Peste Negra no século XIV por meio de inúmeras pinturas contendo elementos como caveiras, corpos empilhados, máscaras assustadoras com bico, típicas dos especialistas em saúde da época, e a figura alegórica da morte. Uma das mais violentas epidemias, que ceifou cerca de 20 milhões de vidas, inspirou obras de dois grandes nomes das artes no século XX numa perspectiva artística mais íntima e menos global: a Gripe Espanhola que ocorreu entre 1918 e 1919. A doença é advinda do vírus influenza, um dos maiores carrascos da saúde e responsável, séculos depois, em 2009, pela Gripe Suína (H1N1). O vírus está em constante mutação, por isso ainda não estamos imunes.

 

Autorretrato após a Gripe Espanhola, Edvard Munch, 1919, e A família, Egon Schiele, 1918.

 

Em 1919, Edvard Munch, que fora acometido pela doença, se representou em uma pintura com a pele amarelada, sentado numa cadeira com um cobertor sobre as pernas, numa aparência frágil em “Autorretrato após a Gripe Espanhola”. O artista sobreviveu à moléstia, mas esse não foi seu único contato com a sombra da morte, que o perseguiu de forma angustiante pela vida influenciando, radicalmente, sua obra. Ele fez várias pinturas relacionadas com a perda da sua irmã Sophie, que aos 15 anos morreu em decorrência de uma tuberculose pulmonar, bem como sua mãe, que falecera pela mesma razão quando Munch tinha apenas 5 anos. Em 1881, Munch pintou “A criança doente”, numa referência a Sophie, e trinta anos após a morte da mãe, fez “A mãe morta e a criança”. Em “O Grito”, seu mais famoso trabalho, nota-se a semelhança da figura do homem, que grita agoniado na ponte, com seu semblante amarelado do “Autorretrato após a Gripe Espanhola”.

Outro artista que foi atacado pela gripe espanhola foi o austríaco Egon Schiele, que infelizmente não teve a mesma sorte de Munch e morreu em consequência da doença. Um tanto narcisista chegou a fazer uma centena de autorretratos de maneira extremamente pictórica, muitos com figuração mutilada, com traços, cores e formas agressivas e deformadas. Schiele, como Munch, teve a morte como sua “amiga”, uma presença constante que se tornou um dos temas centrais de suas obras. Seu pai, a quem dedicava profundo afeto, morreu vítima de sífilis quando Schiele estava com 15 anos. Essa perda foi uma dor que carregou a vida toda. Não bastasse o sofrimento que a ausência do pai lhe causara, em 1918 perdeu sua esposa grávida de seis meses para a gripe espanhola, que o levou três dias depois. A pintura “A família”, desse mesmo ano, é de um período em que a obra de Schiele havia se tornado mais madura e sensível. O artista foi convocado para o serviço militar três dias após seu casamento com Edith Harms, em 1915, o que não interrompeu seu processo artístico. A partir daí seus traços passaram a ser menos agressivos e as cores mais tenras. Na obra, o pintor se representa com a família que nunca teve, uma vez que o filho jamais chegou a nascer. O quadro tem uma carga simbólica, melancólica e obscura de um projeto de vida abortado. É como um prenúncio do fim que estava por vir.

Recentemente a imagem de uma criança brincando com uma boneca de enfermeira, enquanto os bonecos de super-heróis estão guardados num cesto, feita por Bansky, viralizou na Internet como um símbolo de gratidão aos agentes da saúde e uma centelha de esperança. Bansky, que jamais revelou sua identidade e pode ser um homem, uma mulher ou um coletivo, nos deixa perceber a importância da arte, não do indivíduo. A arte que ultrapassa gerações revela acontecimentos importantes e que sempre está de mãos dadas com um dos grandes conflitos existenciais, que é a iminência da morte. Talvez essa será uma das obras que ficarão para a história como indicação desta fase tão delicada que estamos vivendo na luta contra o Coronavírus.

 

Game Changer, Bansky, 2020. Reprodução/Instagram/banksy.

 

 

Isa Carolina é especialista em História da Arte, professora e mediadora cultural na Escola de Artes Visuais do Cefart – FCS.