Memória em ciclo

Levando em conta a intrínseca relação entre a análise de um fato com a limitação das percepções humanas, podemos definir que toda exploração de um assunto é passível de influência na interpretação, limitada pelos nossos sentidos. Isso se torna ainda mais presente no assunto que vamos abordar, a memória, já que se trata de um fenômeno que só existe a partir da nossa experiência sensorial e que, posteriormente, tem aplicada sua significância a outros corpos, materiais ou não. 

Primordialmente, a memória é um recurso da cognição humana para marcar acontecimentos relevantes para o futuro do indivíduo, seja pela defluência de uma experiência ruim, que precisa ser evitada, seja por uma experiência boa que valha a rememoração. Também há a transmissão entre as pessoas, já que a linguagem humana habilita os indivíduos pertencentes a (ou intérpretes de) uma cultura a aprender e/ou ensinar uma memória por equiparação simbólica. Essa habilidade de compartilhar experiências é o que desenvolve uma memória coletiva, que é compartilhada mesmo sem o contato direto com o fato gerador. 

Outro aspecto é o da relação entre História e memória. Assim como descrito por Le Goff, “[a] dialética da história parece resumir-se numa oposição – ou num diálogo – passado/presente (e/ou presente/passado) (1990, p. 3).”. Essa dicotomia, em geral, colabora para a atribuição de valores, e, dessa forma, podemos ver sua relação com os elementos mnemônicos, que sempre estão relacionados com opiniões, sentidos e lembranças. A memória não é somente um fenômeno individual, ela consegue atravessar a história e alimentá-la, colaborando para o surgimento da memória coletiva. Esse fenômeno tão espetacular é capaz de ser absorvido por cada um de nós de uma maneira única, sendo difundido de geração em geração, provocando novas leituras do passado, perdas e/ou ressurreições, ressignificações e até mesmo revisões.

Assim como a natureza, os mitos e a História, a memória é cíclica. Essa consciência de um tempo cíclico já existe há muito, tendo registro nas civilizações Astecas, o que traz a noção de que diversas fases que devem ser passadas e/ou superadas para que se retorne ao início. Para Le Goff, a história cíclica seria a concepção dominante e, nela, passa-se pelas fases de progresso, apogeu e decadência. Assim como a História, a memória passa por estágios que a transformam em um processo, uma narrativa. 

As obras escolhidas para esta parte da mostra também possuem um discurso que se esconde por trás das imagens que, juntas, constroem uma história e um ciclo, fulgurando nas memórias dos artistas que, a partir de seus processos, nos permitem também compartilhar esse imaginário e criar nossas próprias recordações a partir de seus trabalhos.

Memória em Ciclo é um recorte curatorial para a mostra CHAMA: 7 Acervos da Memória, de 2021, do Cefart, realizada por Cecília Queiroz, Sâmmya Dias, Themis Lobato e Arthur Senra. A narrativa desenvolvida se norteia pela ideia de que a memória começa pelo fim, e, a partir disso, escolhemos algumas obras que versam sobre a memória e sua ciclicidade. 

Acompanhe abaixo a relação dessas obras com essa nossa premissa. 

“Retratos da Quarentena I e II”, Lívia Lopes (2020). Fotografia analógica.

Abrimos com as fotografias analógicas “Retratos da Quarentena I e II”, de Lívia Lopes (2020), nas quais vemos um retrato da intimidade do pai da artista (que veio a falecer poucos meses após essas imagens serem feitas). O momento de vulnerabilidade que as fotos transmitem nos remete aos sentimentos de solidão e tristeza do enclausuramento que vivenciamos durante a quarentena imposta pela pandemia de Covid-19. Porém, o que sobressai é a sensação de afeto entre pai e filha que existe para além da perda na memória. 

“Toque do Eterno”, Arthur Senra (2016). Fotografia digital.

Em “Toque do Eterno”, de Arthur Senra (2016), vislumbramos primeiramente um braço que se estende em uma posição pouco natural, repousado numa imensidão de branco. A forma do movimento do braço permite intuir, ou dá a imaginar, que é um braço póstumo: ele não tem intenção, ele só repousa de uma maneira leve. Por que que esse braço cai e se prostra ali? A segunda visão sobre a imagem surge quando buscamos saber um pouco mais sobre a história de sua realização e chegamos ao fato que essa é a mão do artista Carlos Bracher quando ele se aproxima do quadro para medir as proporções e começar a pintar, ou seja, o toque do artista na obra antes da extinção do branco: “O toque do eterno”.

“Minha fé e meu jogo de cintura”, Igor Cerqueira (2018). Fotografia digital.

A obra “Minha fé e meu jogo de cintura”, de Igor Cerqueira (2018), é composta por três fotografias em preto e branco que mostram alguns dos grafismos feitos nas paredes da carceragem por detentas da unidade prisional feminina do Centro de Remanejamento do Sistema Prisional (CERESP), antigo prédio do Departamento de Ordem Política e Social de Minas Gerais (DOPS-MG). As imagens nos fazem pensar em quais seriam os sentimentos que foram “apagados” pelas camadas de tinta nas paredes e em que nos contam os relatos que sobreviveram. Na linha narrativa da memória, podemos ver como se repetiram, durante anos, o sofrimento, a tristeza, a tortura e a brutalidade suportados por aquelas que se passaram por aquele lugar. Aqui se fazem evidentes a dor que se repete, o ciclo de flagelo e as memórias subterrâneas.

“Saudade”, Cecília Queiroz (2021). Fotografia com intervenção de costura digitalizada.

Em “Saudade”, de Cecília Queiroz (2021), a narrativa entre a mulher, a estrada, as montanhas e o homem ecoa a falta. O mistério presente nas fotografias antigas que a artista utiliza é vestígio de outrora, de reminiscências saudosas que são trazidas para a contemporaneidade com as linhas vermelhas que marcam o trajeto narrativo. “Falta” é uma palavra importante para as discussões acerca da memória, pois a memória é construída com a ausência. Na obra em questão, observamos essa carência localizada em “saudade”, palavra que só existe na língua portuguesa e diz de um sentimento que une o amor, a distância e a falta. O verso da costura é um rastro do fazer artístico, assim como a memória tem diversas faces. 

“Materiais da Memória”, Lídia Nicole (2021). Fotografia digital.

A obra “Materiais da Memória”, de Lídia Nicole (2021),nos leva para uma pesquisa da intimidade. A artista recolhe, dentre o acervo familiar, algumas imagens e cria uma nova narrativa em cima daquelas que foram feitas pelos parentes. Analisando as fotografias encontradas, a artista percebe que, muitas vezes, a memória é atrelada à materialidade, como no caso de seu acervo pessoal, que conta com cartas, fotografias e fitas de recordações. Sem o suporte físico, as memórias são capazes de permanecer? Os objetos possuem tanto memória intrínseca quanto extrínseca e, por mais que ele não colabore para nossa rememoração pessoal, sempre terá algo a nos contar, seja sobre um tempo, uma materialidade, seja, quem sabe, sobre alguém. 

“Lugares de Memória”, Lucas Tarabal (2017). Desenho em bico de pena sobre papel com intervenções de máquina de costura e tinta guache.

Já em “Lugares de Memória 1”, de Lucas Tarabal (2017), encontramos uma obra composta de três desenhos de construções em arruinamento em Minas Gerais, mais especificamente em Belo Horizonte, Ouro Preto e em Taquaraçu de Minas. Nessa sequência, podemos perceber a passagem do tempo e as marcas que ele pode deixar, além da questão da luta contra ele, afinal, mesmo em ruínas, as construções lutam para existir. O medo de não ser, de não estar é inerente ao homem e, por isso, a memória é o maior legado que podemos deixar. É por meio da rememoração, da passagem de geração em geração que permanecemos vivos, que deixamos uma parte de nós no mundo: nossa contribuição, nossa herança imaterial. O tempo modifica – afinal, ele possui um caráter quase que destruidor – e cabe a ele dizer o que fica e o que deve ir. Seria o tempo nosso inimigo?

O grupo de curadores desta seleção escolheu desenvolver uma narrativa cíclica para as obras aqui apresentadas, já que a reflexão inicial foi de que a memória começa pelo fim e é circular. Dito isso, deixamos o caminho aberto para que o leitor possa fazer suas escolhas: realizar uma segunda leitura buscando outras maneiras de ler/ver essas imagens ou deixar o curso de suas primeiras impressões seguirem e passar para as próximas páginas. Buscamos, assim, suscitar com essas imagens mais uma leitura sobre a memória a partir da arte, para refletirmos nossas próprias narrativas pessoais.

Referência

LE GOFF, Jacques. História e Memória. Tradução de Bernardo Leitão. 5. ed. Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, 2003.

Sobre os autores

Cecília Queiroz Artista, graduada em Cinema e Audiovisual pela UNA e estudante no curso básico de curadoria na Escola de Artes Visuais do Cefart | FCS.

Themis Lobato – Atriz formada pela UNB, arte-educadora e estudante no curso básico de curadoria na Escola de Artes Visuais do Cefart | FCS.

Sâmmya Dias – Artista, graduanda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais e estudante do curso de curadoria na Escola de Artes Visuais do Cefart | FCS.

Arthur Senra (b. 1986) é um artista brasileiro que vive em Belo Horizonte MG. O tempo é tema central de sua trajetória como artista, ganhando forma em práticas interdisciplinares que incluem fotografia, literatura e cinema.

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