A escultura de Agnaldo Manoel dos Santos

Agnaldo Manoel dos Santos (1926-1962) foi um artista visual baiano que teve uma carreira marcante em sua breve vida. Nascido na ilha de Itaparica (BA), em uma família muito pobre, logo cedo ficou órfão de pai e mãe, e desde a infância trabalhou em inúmeros serviços pouco remunerados para custear seu sustento. No ano de 1947, conseguiu uma colocação como vigia/zelador no ateliê do artista soteropolitano Mário Cravo Júnior (1923-2018) em Salvador. Mário Cravo era um artista iniciante, mas já com projeção nacional e internacional.

Essa oportunidade de trabalho foi fundamental para que Agnaldo despertasse e desenvolvesse seu gosto pela arte. Por volta do ano de 1951, Mário Cravo passou a trabalhar com grandes toras de madeira como suporte para confecção de suas obras. Foi quando Agnaldo pôde revelar sua habilidade com o machado, sua destreza adquirida em anos de trabalho como lenhador e produtor de cal. Devido a essas experiências anteriores com a madeira, ele passou a preparar as toras para Mário Cravo. Desafiado por esse, iniciou o trabalho com escultura, tendo-o como professor. A partir desse momento, ao demonstrar interesse pelo trabalho artístico, passou também a ser ajudante e aprendiz de Mário Cravo.

É importante mencionar que, na temporada como vigia/zelador/ajudante/aprendiz do ateliê, Agnaldo conheceu Pierre Verger e o trabalho desse fotógrafo, entre outros estudiosos de temas afro-brasileiros. Isso foi fundamental em suas produções artísticas, pesquisas e inspirações. A temática afro-brasileira e o sincretismo foram bastante presentes em toda a sua breve carreira. As obras escultóricas de Agnaldo eram uma produção original com traços e influências da arte iorubá, bantu e demais nações africanas. Nela encontramos divindades afro-brasileiras, santos católicos, figuras populares, ex-votos, carrancas, destacando-se a criação de inúmeras cabeças, sempre representando figuras humanas e animais.

Os trabalhos de Agnaldo se desenvolveram a partir da experiência, dos modos de vida e da postura investigativa desse artista. É necessário mencionar a inspiração e o diálogo com os trabalhos de Mário Cravo, mas também com os de outros contemporâneos, como Pierre Verger (1902-1996), Jenner Augusto (1924-2003) e Lênio Braga (1931-1973).

Sobre o suporte em madeira, Tiago Leme (2003) nos fornece informações relevantes:

“Tem-se que a grande maioria da representação antropomórfica da escultura africana tradicional é de madeira, e a arte de Agnaldo dos Santos é preponderantemente desse material, de princípio fazendo uso da jaqueira, do ipê e do pau d’arco. Posteriormente, passou a utilizar o cedro, por recomendação de Francisco Biquiba Guarani, escultor de carrancas na região do rio São Francisco, depois de ter comunicado ao carranqueiro a infelicidade de saber que as esculturas que havia feito fendiam de alto a baixo.

Como procedem muitos artistas da África tradicional, Agnaldo faz uso de um procedimento para escurecer a madeira por meio de substâncias naturais e acaba tornando-a brilhante…”

Percebe-se, em alguns casos, por causa da cor e da textura, que há o uso de duas ou três madeiras diferentes. Sobre a conservação dessas peças, nota-se várias rachaduras, principalmente agora que algumas delas estão se aproximando de setenta, oitenta anos de sua produção.

Selecionamos aqui apenas quatros trabalhos que darão uma perspectiva para as pessoas que não conhecem os trabalhos de Agnaldo – são obras representando figuras humanas. Na obra “Rei Sentado”, percebe-se uma figura assentada dentro de uma estrutura que remete a um manto, véu ou cúpula. Os olhos em formato de folha, bem puxados, são muito comuns nas esculturas e máscaras iorubás, os lábios grossos e um nariz triangular, fazendo os detalhes do rosto em alto relevo. Destaca-se, ainda, a coroa sobre a cabeça. O corpo de linhas simples, postura ereta, com as mãos unidas e sem pés definidos.

Figura 1: “Rei Sentado”, Agnaldo Manoel dos Santos, escultura em madeira, 52 X 29 X 23, [S.D.], Coleção Ladi Bezus. Fonte: Fernando Chaves/Catálogo Fundação Bienal de São Paulo.

Em “Nossa Senhora da Conceição”, vê-se o véu, as mãos unidas em sinal de oração, o corpo com linhas retas. Nota-se uma vestimenta em duas peças, blusa e calça, sem muitos detalhes, a não ser o punho das mangas. A parte inferior bem definida, porém os pés com o mesmo corte arredondado da obra anterior. Na parte superior, há o pescoço. Detalhe importante: dificilmente Agnaldo representava o pescoço em suas estátuas. Aqui o pescoço carrega um crucifixo. Não há alusão à figura de Oxum, correspondente divino nas religiões de matriz africana, pois não se vê o símbolo representativo.

Figura 2: “Nossa Senhora da Conceição”, Agnaldo Manoel dos Santos, escultura em madeira, 46 X 20 X 19, [S.D.], Coleção Cora Pabst. Fonte: Fernando Chaves/Catálogo Fundação Bienal de São Paulo.

Em relação à expressão corporal da peça, vê-se um corpo voltado para a oração. A cabeça inclinada em direção ao chão, somada aos olhos em formato de folha, mira algo abaixo e, em conjunto com as mãos posicionadas ao encontro uma da outra, transmitem essa ideia.

Na obra denominada “Santo”, tem-se um recorte corporal longilíneo, em posição de oração. Não existe uma definição de qual divindade de matriz africana ou afro-brasileira se trata, pois não há um símbolo alusivo. Vê-se um entalhe de crucifixo abaixo das mãos e no peito da obra de arte. Na cabeça, observa-se um adorno, uma espécie de chapéu, associado a pingentes, que se projetam pela testa.

Figura 3: “Santo”, Agnaldo Manoel dos Santos, escultura em madeira, 72 X 24 X 22, [S.D.], Coleção Vilma Haidar Eid. Fonte: Fernando Chaves/Catálogo Fundação Bienal de São Paulo.

Repetem-se as mãos prostradas, o recorte em alto relevo para olhos e boca, bem como o nariz de base triangular. As orelhas estão deslocadas para frente, como se “quisessem ouvir mais”. Na parte inferior do corpo, observa-se uma calça com detalhes de listra. O manto e os pés ganham outro elemento, um pedestal para o equilíbrio da peça.

Ainda sobre a postura corporal das estátuas nesse pequeno conjunto selecionado aqui (“O Rei Sentado”, “Nossa Senhora da Conceição” e “Santo”), temos os ombros esculpidos projetados para frente e, no caso de “Santo” e “Nossa Senhora da Conceição”, a distância entre ombros é bem curta.

Na estátua “Oxossi Caçador”, vê-se uma figura masculina, magra e alta, sobre um pedestal. Não há manto, mas o recorte tradicional de olhos em folha e lábios pronunciados se repete. Têm-se as orelhas muito próximas aos olhos. O nariz tem novo formato, agora arredondado. Carrega em suas mãos uma arma de fogo longa e na cintura um facão, como símbolos de poder, virilidade e força. Carrega a tiracolo um alforje, uma bolsa onde coloca suas provisões, algo típico de um caçador brasileiro. É uma releitura da imagem brasileira de Oxossi, que normalmente é representado por um homem alto e forte com um arco e flecha nas mãos.

Figura 4: “Oxossi Caçador”, Agnaldo Manoel dos Santos, escultura em madeira, 196 X 33 X 25, [S.D.], Coleção Museu de Arte Moderna da Bahia. Fonte: Fernando Chaves/Catálogo Fundação Bienal de São Paulo.

Em seus curtos dez anos de carreira, Agnaldo produziu muitas obras e conseguiu uma boa recepção do mercado, pois o Brasil e o mundo estavam vivendo um momento de reconstrução econômica e política. No caso do Brasil, o momento era mais especial ainda, visto que o país estava deixando uma ditadura varguista que durou quinze anos. Assim, havia uma expansão de pensamentos democráticos, de direitos e de capital. A recepção à obra de Agnaldo Manoel dos Santos foi positiva por vários fatores.  Primeiro, porque é uma produção original que alude às proposições estéticas africanas, retomando uma ancestralidade religiosa, estética e, por conseguinte, cultural. Segundo, por causa dos diálogos com intelectuais da época, associados à etnografia, à antropologia e, principalmente, à segunda geração modernista, que continuava reafirmando a missão de construir a identidade nacional galgada em três elementos constitutivos do povo brasileiro, revisitando elementos culturais indígenas, africanos e europeus. Por último, a qualidade, valor de mercado e originalidade de suas obras.

A obra de Agnaldo está presente nos grandes museus brasileiros de arte moderna e contemporânea, bem como nas grandes coleções privadas de arte. Ele teve reconhecimento ainda em vida, contudo, após a morte, suas obras ganharam uma valorização em exposições internacionais nos Estados Unidos, na Europa e na África.

Ainda vivo, talvez o ponto mais importante de sua carreira tenha sido quando, em 1957, teve uma obra exposta na 4ª Bienal de Arte de São Paulo, ao lado de outros grandes artistas brasileiros e internacionais. Agnaldo Manoel dos Santos não foi esquecido, pois, anos depois, Mestre Didi e outros trilharam o caminho desbravado por ele. Em todas as grandes exposições de arte afro-brasileira nesses sessenta anos, há uma obra ou referência a esse homem que reconectou a arte brasileira à sua ancestralidade africana. Com o tempo, Agnaldo passou a ser conhecido também como o Príncipe dos Haussas.

Referências:

Imagens

Figura Ilustrativa e Figura 1: Rei Sentado, Agnaldo Manoel dos Santos, escultura em madeira, 52 X 29 X 23, [S.D.], Coleção Ladi Bezus. In: AGUILAR, Nelson (ORG). Mostra do descobrimento: arte afro-brasileira. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo/Associação Brasil 500 anos, 2000.

Figura 2: Nossa Senhora da Conceição, Agnaldo Manoel dos Santos, escultura em madeira, 46 X 20 X 19, [S.D.], Coleção Cora Pabst. In: AGUILAR, Nelson (ORG). Mostra do descobrimento: arte afro-brasileira. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo/Associação Brasil 500 anos, 2000.

Figura 3: Santo, Agnaldo Manoel dos Santos, escultura em madeira, 72 X 24 X 22, [S.D.], Coleção Vilma Haidar Eid. In: AGUILAR, Nelson (ORG). Mostra do descobrimento: arte afro-brasileira. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo/Associação Brasil 500 anos, 2000.

Figura 4: Oxossi Caçador, Agnaldo Manoel dos Santos, escultura em madeira, 196 X 33 X 25, [S.D.], Coleção Museu de Arte Moderna da Bahia. In: AGUILAR, Nelson (ORG). Mostra do descobrimento: arte afro-brasileira. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo/Associação Brasil 500 anos, 2000.

Textos

AGNALDO. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2021. Disponível em: ˂http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa9627/agnaldo˃. Acesso em: 28 de setembro de 2021. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7

AGUILAR, Nelson (ORG). Mostra do descobrimento: arte afro-brasileira. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo/Associação Brasil 500 anos, 2000.

BEVILACQUA, Juliana Ribeiro da Silva. Agnaldo Manoel dos Santos ou la subversion de la modernité consentie, Brésil(s) [En ligne], 19 | 2021, mis en ligne le 31 mai 2021, consulté le 01 octobre 2021. URL: ˂http://journals.openedition.org/bresils/9234˃; DOI: ˂https://doi.org/10.4000/bresils.9234˃. Acesso em: 28 de setembro de 2021.

CONDURU, Roberto. Arte Afro-brasileira. Belo Horizonte: C/Arte, 2007.

LEME, Tiago José Risi. Encontro de elementos católicos e africanos na escultura de Agnaldo Manoel dos Santos. In: Texto da comunicação preparada para o XI Simpósio Internacional de Iniciação Científica da Universidade de São Paulo – SIICUSP, setembro 2003. ˂http://www.arteafricana.usp.br/codigos/reflexoes/002/agnaldo_manoel_dos_santos.html˃. Acesso em: 28 de setembro de 2021.

LODY, Raul. Dicionário de Arte Sacra & Técnicas Afro-brasileiras. Rio de Janeiro: Pallas, 2003.

MATTOS, Regiane Augusto de. História e cultura afro-brasileira. São Paulo, Contexto, 2016.

Museu de Arte Moderna da Bahia. O Museu de Arte Moderna da Bahia. São Paulo, Banco Safra, 2008. 358 p.

MUNANGA, Kabengele. Arte Afro-Brasileira: o que é afinal? In: AGUILAR, Nelson (ORG). Mostra do descobrimento: arte afro-brasileira. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo/Associação Brasil 500 anos, 2000. p. 98-111.

VALLADARES, Clarival do Prado. Agnaldo Manoel dos Santos: origem e revelação de um escultor primitivo. Afro-Ásia, n. 14, p. 22-39, 1983.

Sobre o autor:

Alexandre Ventura é professor de História da Arte no Cefart – FCS, graduado em História pela UFMG e mestre em História Social pela PUC-SP.