A importância do quadro “Tropical” para a arte brasileira

Anita Malfatti (1889-1964) foi uma artista paulistana que trilhou um caminho de estudos diferente de outros artistas do seu tempo, devido ao seu esforço pessoal, apoiada por sua família, principalmente por um tio. Começou os estudos com sua mãe e depois os aprofundou na Alemanha e nos Estados Unidos, na década de 1910. Seus estudos foram interrompidos na Europa e transferidos para os Estados Unidos devido à eclosão da Grande Guerra (1914-1918), conflito que tem no nacionalismo exagerado e xenófobo um de seus deflagradores, o que motivou a intelectualidade brasileira a desenvolver intenso debate sobre o nacionalismo e sobre o papel da arte na construção de uma identidade nacional.

Anita Malfatti foi a artista precursora do modernismo no Brasil e sua exposição “Pintura Moderna – Anita Malfatti”, realizada em São Paulo entre 12 de dezembro de 1917 e 11 de janeiro de 1918, foi a terceira exposição individual de um artista modernista no país, sendo que a primeira foi a de Lasar Segall, em 1913. As repercursões negativas e positivas da exposição de Anita foram importantes para o rumo do movimento modernista brasileiro.

Essa exposição foi composta por várias obras icônicas da artista, que se tornaram referências do expressionismo brasileiro, como: “A boba”, “A mulher de cabelos verdes”, “A estudante russa” e “O homem amarelo”. Havia, ainda, outro conjunto de obras feitas aqui no Brasil após seu retorno, que também foram expostas, como: “A índia”, “A palmeira”, “Rancho de sapé”, “Capanga” e “Caboclinha”. Essas obras, ao contrário das pinturas mais conhecidas de Anita Malfatti, estão desaparecidas. Apesar disso, pelos títulos das mesmas, é possível inferir uma presença da temática nacionalista nas obras.

A pintura a óleo sobre tela denominada “Tropical” foi exposta com o título de “Negra Baiana”. A tela difere-se bastante dos outros retratos feitos por Anita. Nela se vê uma mulher em primeiro plano segurando um cesto de frutas tropicais, com um cenário de bananeiras ao fundo. A moça tem uma expressão desanimada, os cabelos presos e veste uma blusa branca que realça sua cor e o colorido amarelado das frutas. A diferença desse para outros retratos pintados por Anita está na etnia da modelo, afro-brasileira, e na sugestão de vestes e atitude de trabalho da retratada, que se distancia da política eugenista – de embranquecimento da população – adotada no Brasil no final do século XIX. Essa foi uma prática racista que fomentou a imigração estrangeira para o Brasil e a substituição da mão de obra de pessoas escravizadas por europeus.

Do ponto de vista técnico, Tadeu Chiarelli afirma que essa obra não atende à estrutura de um quadro vanguardista modernista, já que não se percebe características expressionistas, futuristas ou cubistas nela. “Tropical”, segundo Chiarelli, inscreve-se no realismo ou no naturalismo. Distante da proposição vanguardista da pintora em relação à técnica, sua temática nacionalista a aproxima dos intelectuais do período engajados na construção da nacionalidade brasileira.

“Tropical”, óleo sobre tela, 1917.

Mas, afinal, por que essa obra é importante para a arte brasileira? Sua importância está justamente no fato de representar uma mulher preta, trabalhadora, cercada de elementos naturais tipicamente brasileiros. Colocar essa mulher no centro de uma tela em 1917 é algo bastante inovador, se considerarmos o contexto de uma sociedade que naturalizava o racismo estrutural.

Ao procurarmos nas listas de obras de Anita Malfatti do período percebemos que a obra “Tropical”, assim como a obra desaparecida “A índia”, representa uma filiação da artista à missão de construir uma nacionalidade brasileira pelo caminho das artes visuais.

A troca do nome da obra não foi algo fortuito, mas uma ressignificação, pois seu nome original, “Negra Baiana”, regionaliza a pintura ao dar um lugar de pertencimento à modelo do quadro que se restringe a apenas um estado. Se o interesse dos intelectuais era integrar o país, o nome “Tropical” reflete melhor essa intenção, transmitindo a ideia de que a moça e as frutas têm um lugar de pertencimento mais amplo, o país. Apesar de não romper com o racismo, a obra evidencia uma busca por um tipo físico brasileiro próximo à realidade que a cercava.

Sobre o autor:       

Alexandre Ventura é professor de História da Arte no Cefart – FCS, graduado em História pela UFMG e mestre em História Social pela PUC-SP.

Referências:

Imagem

MALFATTI, Anita. TROPICAL. Óleo sobre tela, 77.00 cm x 102.00 cm, 1917, acervo da Pinacoteca do Estado. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra2046/tropical>. Acesso em: 05/07/2020.

Textos

BATISTA, Marta Rossetti. Anita Malfatti no tempo e no espaço. São Paulo: IBM Brasil, 1985.

CAMPOS, Pedro Herzílio Ottoni Viviani de. Caracterização de pinturas da artista Anita Malfatti por meio de técnicas não destrutivas. São Paulo, Tese de doutorado, Universidade de São Paulo, Instituto de Física, Departamento de Física Nuclear, 2015 (Mimeo).

CHIARELLI, Tadeu. Um jeca nos vernissages. São Paulo: Edusp, 1995. (Texto e arte, 11).

Tropical, de Anita Malfatti: reorientando uma velha questão. NOVOS ESTUDOS CEBRAP 80, março 2008, p. 163-172.

EXPOSIÇÃO de Pintura Moderna – Anita Malfatti. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/evento238102/exposicao-de-pintura-moderna-anita-malfatti>. Acesso em: 05/07/2020.

ZILIO, Carlos. A querela do Brasil: a questão da identidade da arte brasileira: a obra de Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari: 1922-1945. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997.