A viagem como método de pesquisa modernista: Tarsila e as cidades de Minas

Há vinte anos foi defendida uma dissertação de mestrado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) denominada “A Viagem de Descoberta do Brasil: um exercício do moderno”, cujo tema central era a viagem às Minas Gerais pelos modernistas paulistas, em 1924. Os componentes eram Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Tarsila do Amaral e seus acompanhantes: René Thiollier, Blaise Cendrars, Goffredo da Silva Teles, Olívia Guedes Penteado e Oswald de Andrade Filho. Nas fontes pesquisadas, identifica-se uma grande variedade de denominações que se referem à viagem, tais como “caravana artística paulista”, “embaixada artística” e “caravana modernista”. No entanto, é mais didático e lógico usar a denominação“Viagem de Descoberta do Brasil”, utilizada por Oswald de Andrade no Manifesto Pau-Brasil, e, por isso, assim se fará nesse texto.

O escopo central é a análise de alguns desenhos de cidades mineiras feitos por Tarsila do Amaral, bem como a importância dessa produção visual para a história da arte brasileira. Exemplos: a idealização de um serviço de proteção ao patrimônio histórico e artístico; o estreitamento de laços entre os modernistas mineiros e Mário de Andrade; o aprofundamento dos interesses modernistas pelo Barroco, pelo arcadismo e pelos prédios edificados no século XVIII. Essas consequências e desdobramentos da viagem serão abordados em outros textos do blog Um Click de Cultura.

Em entrevista de novembro de 1939, publicada no jornal Folha de Minas, Mário de Andrade responde a pergunta de um jornalista anos depois da Viagem de 1924: “Nessa viagem tive oportunidade de assistir às procissões da Semana Santa, tendo a que se realiza sexta-feira à noite em Tiradentes me deixado profunda impressão”. Autores como Alexandre Eulalio e Aracy Amaral buscaram uma análise dos festejos de páscoa, debatendo acerca de como os membros da “caravana modernista” ficaram emocionados com as cerimônias religiosas.

Nos desenhos de Tarsila, produzidos durante a viagem, há um processo de valorização das imagens, que se fundem em temáticas do Brasil do século XVIII: ares rurais e interioranos aliados a aspectos naturais, principalmente à flora. As figurações de Tarsila sobre as casas de interior ou roças parecem fazer um contraponto com o gosto cosmopolita por aparelhagens modernas como trens urbanos, luz elétrica, serviços médicos próximos às residências e principalmente o dinamismo de cidades como São Paulo e/ou Paris, que vemos em outras produções da pintora.

Os três desenhos que seguem têm em comum um gosto extremado pela simplicidade. Não só nas temáticas, nas representações mais típicas relacionadas às cidades de Minas, mas também na técnica, que, segundo sua sobrinha Aracy Amaral, fundou uma escola por causa dos traços extremamente simples, e de como lidava com a cor, conferindo volume através do trabalho com o claro-escuro. Além de ter tido grande receptividade junto ao público e à crítica francesa devido à sua exposição individual na Galeria Percier.

A imagem da figura 1 foi retirada do livro de Aracy Amaral, e, apesar de não mencionar o título do desenho, parece se chamar “Ouro Preto”, denominação que Tarsila escreveu logo acima de sua rubrica.


Figura 1: “Sem título” (Ouro Preto), Tarsila do Amaral. Fonte: “Blaise Cendrars no Brasil e os Modernistas”

Esse esboço registra uma vista panorâmica da cidade, cercada pelas serras e com seu casario amontoado. Os morros envolvem a cidade e no interior dessa proteção surge uma cidade de 1924, que se revela com algumas construções em estilo barroco: as igrejas, nitidamente representadas. Parte do desenho reproduz construções que não se consegue identificar. Mais uma vez as copas das árvores e as palmeiras foram destacadas por Tarsila. Entre o casario, há também alguns espaços vazios que podem ser interpretados como ruas, mesmo que sem os traços das calçadas, os paralelepípedos e as bases das construções. A mesma composição aparece em alguns outros desenhos de Tarsila sobre Ouro Preto. São variações de um mesmo tema que mostram o estudo da artista e como ela concebe visualmente as cidades visitadas.



Figura 2: “Sem título” (Mariana), Tarsila do Amaral, 13 x 21,3 cm, lápis sobre papel, Instituto de Estudos Brasileiros/Universidade de São Paulo (IEB/USP). Fonte: “Desenhos de Tarsila”

No desenho “Sem título” (Mariana) (figura 2), a pintora chama a atenção para o casario marianense cercado por serras, copas de árvores, palmeiras e até mesmo por uma solitária bananeira (no canto inferior esquerdo do desenho). Ao centro, no foco principal, as Igrejas do Carmo e de São Francisco, além de outros prédios religiosos. Apenas a Igreja do Rosário tem as bases, as outras construções flutuam nos espaços vazios, que em Mariana se confundem com as ruas, o córrego do Catete e o rio do Carmo.


Figura 3: “Sem título” (Congonhas), Tarsila do Amaral, 18,3 X 22,6 cm, nanquim sobre papel. Fonte: “Tarsila”

No desenho “Sem título” (Congonhas) (figura 3), há uma pequena variação no ângulo que a pintora escolheu para desenhar a Igreja do Nosso Senhor do Bom Jesus. A perspectiva não permite que apareçam as formações serranas que rodeiam a cidade. Em destaque, no centro, está a igreja citada, onde se encontram as famosas estátuas dos profetas de Aleijadinho e as capelas com os passos da paixão de Cristo. Aqui se repete a cidade flutuante, sem ruas. A primeira falha à esquerda, entre o casario e o santuário com suas capelas, é a rua Bom Jesus, que até hoje conserva o calçamento do século XVIII.

No desenho, aos pés da rua, fica a Igreja de São José Operário. Se considerarmos a extensão da rua Bom Jesus, essa igreja, construída em 1817, localiza-se quase no meio do percurso.

A outra rua paralela à da Igreja de São José e que aparece no desenho de Tarsila do Amaral chama-se também São José. Mas hoje, 96 anos depois, não guarda mais as características do período colonial.

Esses três desenhos realçam uma dimensão comum das paisagens dessas cidades feitas por Tarsila – no caso Congonhas, Mariana, Ouro Preto –, assim como ela fez com São João Del Rei e Tiradentes, municípios que se mantiveram afastados de um cenário industrializado. Todas essas cidades foram vilas no período da administração portuguesa, e, se comparadas a Rio de Janeiro e Salvador, tiveram um grande movimento de pessoas e mercadorias no século XVIII. Eram centros urbanos que permitiam uma mobilidade social discreta.

Tarsila do Amaral utiliza-se do desenho para promover uma “decantação nas vivências” das populações que habitavam Minas Gerais em 1924. Nessa época, esses lugares eram tranquilos. Eram cidades bem diversas das agitadas São Paulo e Rio de Janeiro. A força desse tipo de ilustração permanece até hoje como presença marcante em Minas. Basta ir às diferentes feiras de artesanato, excetuando as do norte do estado e dos vales do Jequitinhonha e do Rio Doce, para entrecortar quadros com vistas panorâmicas das “cidades históricas”, nos quais elementos semelhantes aos dos desenhos de Tarsila, no tocante à temática, podem ser encontrados. Tais imagens – particularmente as dos profetas de Congonhas e dos casarios do século XVIII – formam um conjunto que compõe fortemente a representação nacional do Estado de Minas Gerais. São também muito comuns em cartões postais e principalmente em agências de turismo aqui no Brasil e no exterior.

Referências:

Imagens

Figura 1 e Ilustrativa: “Sem título” (Ouro Preto), Tarsila do Amaral. In: AMARAL, A. A. Blaise Cendrars no Brasil e os Modernistas. São Paulo: Editora 34, 1997. P. 73.

Figura 2: “Sem título” (Mariana), Tarsila do Amaral. 13 x 21,3 cm; lápis sobre papel – IEB. AMARAL; T. Série viagem a Minas. In: Desenhos de Tarsila. SP: Cultrix, 1971. Prancha 7.

Figura 3: “Sem título” (Congonhas), Tarsila do Amaral.18,3 X 22,6 cm ‑ nanquim sobre papel, extraído em: ZATZ, L., TEIXEIRA, Z. Tarsila. SP: Paulinas/USP/MAC, 1995, não paginado.

Textos

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Sobre o autor:

Alexandre Ventura é professor de História da Arte no Cefart – FCS, graduado em História pela UFMG e mestre em História Social pela PUC-SP.