Arte afro-brasileira, mecanismo e letrismo na obra de Niobe Xandó

Niobe Xandó (1915-2010) foi uma artista paulista que criou uma carreira sólida com base em uma formação autodidata. Mulher independente e destemida, teve dois casamentos em uma época em que a sociedade julgava que a separação era uma marca de desclassificação social, algo como um “crime” ou desvio de caráter. Também militou nos quadros do PCB (Partido Comunista Brasileiro) nos anos de 1930.

Sua produção iniciou-se em 1947, então com trinta e dois anos, com uma arte figurativa. Em seu percurso artístico, percorreu a representação da figura humana – dando ênfase ao cotidiano da cidade – depois se dedicou a pintar plantas e flores. Em seguida, Niobe passou a produzir quadros dentro de um abstracionismo geométrico. Entretanto, as suas obras de arte de temática afro-brasileira foram uma contribuição significativa para a história da arte brasileira.

Cronologicamente tem idade para ser agrupada junto aos modernistas brasileiros de segunda geração, com o auge das suas produções nos anos 1940 e 1950. Pensando no todo da carreira da artista, seu ápice foi nos anos 1960 e 1970.

Niobe Xandó não se enquadrou no projeto político dos modernistas, mesmo tendo um grande número de obras com temas e inspirações em grafismos afro-brasileiros e máscaras, elementos fundamentais da cultura africana e ameríndia. Não há percepção da iniciativa de se construir uma identidade nacional nas obras e no discurso de Niobe Xandó.

O marxismo e a militância política de esquerda também não parecem ter se refletido diretamente em sua obra, visto que Niobe Xandó não faz críticas ou denúncias sociais. A artista investiga  a cor, o traço, as letras e os signos dos mais diversos.

O recorte das três obras com temáticas afro-brasileiras têm em comum a efervescência cultural vivida pelo Brasil e o mundo no final dos anos 1960 e início dos anos 1970. O debate impulsionado por diversos temas importantes como liberdade de imprensa, censura, oposição à ditadura ou oposição armada à ditadura, luta por direitos civis de afro-americanos, independência das nações africanas e Guerra Fria, tudo isso perpassava de alguma forma as produções criativas de Niobe Xandó.

A artista traz em suas obras várias possibilidades de máscaras, não reproduzindo máscaras africanas ou indígenas brasileiras, mas criando a seu modo outras possibilidades para esse adereço. A partir dos anos 1950, com o apoio do seu marido, o professor de filosofia Alexandre Bloch, Niobe viajou em pesquisa para vários países da Europa, para os Estados Unidos e, no Brasil, passou uma temporada de quatro meses pesquisando em Salvador.

A sua filiação ao modernismo fica por conta do estilo abstrato surrealista, somando-se à incorporação do letrismo e do maquinismo, que são recursos estéticos dadaístas e futuristas, respectivamente. Outro elemento artístico criado pelos modernistas foi incorporar fontes estéticas africanas às obras das vanguardas modernistas, assim como Picasso em “Les demoiselles d’Avignon”, que insere em sua criação máscaras africanas. Niobe as representa de todas as formas, cores e possibilidades.

Do ponto de vista estético, Niobe Xandó fez um trabalho muito próximo aos dadaístas pela adoção do letrismo, pois essa corrente estética insere nas obras letras de alfabetos. Como podemos ver no canto superior direito da figura 1, na obra denominada “Oito Mascaras”, há a letra grega “Ψ” (psi) sobreposta a dois símbolos ovais. A obra em si é bastante complexa. Existem dezessete máscaras coloridas margeando a obra. Na parte interna do quadro há inúmeros grafismos e símbolos, alguns abstratos outros dando sugestões de letras dos alfabetos grego e cirílico.

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Figura 1: “As Oito Máscaras”, Niobe Xandó, 1969. Foto: José Vilhora. Fonte: site da Enciclopédia Itaú Cultural

Outra característica modernista que encontramos nas obras de Niobe Xandó é o maquinismo. Trata-se de incorporar na obra traços, imagens ou peças que fazem alusão direta a máquinas, um recurso estético futurista, que em seu manifesto de 1909 fez questão de elogiar as máquinas e todo poder, força e violência resultantes de seus funcionamentos. Na obra “As Oito Máscaras” se tem vários traços e pontilhados que se assemelham a cartões perfurados, antenas de televisão e – com uma percepção ambígua – observa-se algumas cruzes ou postes de luz.

Vilém Fusser, um amigo da família, professor de filosofia, jornalista ligado ao debate estético dos anos 1950/1960 e um dos colaboradores das primeiras Bienais de São Paulo, foi o responsável por incentivar o debate a respeito da obra de Niobe Xandó. Publicando artigos no jornal Estado de S. Paulo, abriu portas para as bienais de arte de São Paulo e latino-americana.

Na obra “Signos e Símbolos” (figura 2), Niobe sobrepõe vários traços sobre máscaras. Alguns são símbolos religiosos afro-brasileiros, outros traços, círculos e semicírculos que compõem uma obra abstrata geométrica.

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Figura 2: “Signos e Símbolos”, Niobe Xandó, 1967. Foto: Bárbara Schubert Spanoudis. Fonte: site da Enciclopédia Itaú Cultura

Outra característica importante dessa obra é a coloração de terra, sobreposta com as linhas brancas, dando os contornos e as formas. Niobe tem uma tendência do uso de cores quentes em suas produções.

A respeito da pesquisa artística de Niobe Xandó, há um fato significativo: ela passou uma temporada de estudos e pesquisa na Bahia. Isso fortaleceu os traços afro-brasileiros da sua arte, tendo conquistado interlocutores e admiradores do seu trabalho. Pode-se também atribuir especial importância para o fazer artístico de Niobe suas várias idas aos Estados Unidos. Na obra “Black Power I” (figura 3) observa-se um rosto masculino estilizado, todo representado por círculos brancos, alguns preenchidos e outros vazados sob um fundo preto. O contorno do cabelo forma um volumoso cabelo “black power”, típico de vários homens negros nas Américas e na África.

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Figura 3: “Black Power I”, Niobe Xandó, 1970. Foto: José Vilhora. Fonte: site da Enciclopédia Itaú Cultural

Hoje, a maior parte da produção artística de Niobe se encontra em acervos privados e uma pequena parte em acervos públicos, sendo que suas obras não são reunidas para uma exposição individual há muito tempo. Segundo o site da Enciclopédia Itaú Cultural, a última exposição coletiva foi no Centro Cultural São Paulo em 2016 e era sobre arte abstrata. Há a necessidade de se revisitar a obra de Niobe Xandó, ainda que seja uma mulher branca que produziu sobre temáticas e grafismos afro-brasileiros. No final da vida, Niobe Xandó não reconhecia suas obras devido ao Alzheimer. Fato triste, pois a beleza de sua produção deve ser reconhecida sempre.

Referências:

Imagens

Figura 1: XANDÓ, Niobe. “As Oito Máscaras”, óleo sobre chapa, c.i.d., 56,00 cm x 38,00 cm, 1969. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2022. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra65872/as-oito-mascaras˃. Acesso em: 1º jul. 2022. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7

Figura 2 e Ilustrativa: XANDÓ, Niobe. “Signos e Símbolos”, acrílico sobre tela, c.i.d., 127,00 cm x 95,00 cm, 1967. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2022. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra7963/signos-e-simbolos˃. Acesso em: 1º jul. 2022. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7

Figura 3: XANDÓ, Niobe. “Black Power I”, Serigrafia sobre papel, c.i.d., 70,00 cm x 100,00 cm 1970. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2022. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra65890/black-power-i˃. Acesso em: 1º jul. 2022. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7

Textos

AGUILAR, Nelson (ORG). Mostra do descobrimento: arte afro-brasileira. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo/Associação Brasil 500 anos, 2000.

CONDURU, Roberto. Arte Afro-brasileira. Belo Horizonte: C/Arte, 2007.

LODY, Raul. Dicionário de Arte Sacra & Técnicas Afro-brasileiras. Rio de Janeiro: Pallas, 2003.

MATTOS, Regiane Augusto de. História e cultura afro-brasileira. São Paulo: Contexto, 2016.

Museu de Arte Moderna da Bahia. O Museu de Arte Moderna da Bahia. São Paulo: Banco Safra, 2008.

MUNANGA, Kabengele. Arte Afro-Brasileira: o que é afinal? In: AGUILAR, Nelson (ORG). Mostra do descobrimento: arte afro-brasileira. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo/Associação Brasil 500 anos, 2000. p. 98-111.

NIOBE Xandó. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2022. Disponível em: ˂http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa9278/niobe-xando˃. Acesso em: 1º jul. 2022. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7

Sobre o autor:

Alexandre Ventura é professor de História da Arte no Cefart – FCS, graduado em História pela UFMG e mestre em História Social pela PUC-SP.