Arte, arquitetura e política em obras de Portinari

Na história do Brasil é comum associar as obras arquitetônicas de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa com o paisagismo de Burle Marx e as obras de arte de Cândido Portinari. Normalmente considera-se como sendo o primeiro trabalho desse grupo a construção do conjunto arquitetônico da Lagoa da Pampulha, em Belo Horizonte, sendo o ápice dessa parceria a construção de Brasília. Este texto se propõe a analisar o início desse trabalho conjunto entre arquitetura e arte, bem como a importância das obras artísticas nesse projeto modernista. Essa colaboração inicialmente se deu na construção do prédio do Ministério da Educação e Saúde (MES), um longo e lento projeto que aglutinou todas essas forças políticas, arquitetônicas e artísticas dos meados do século XX. A respeito de imagens do prédio em questão, para apreciação de suas formas e espaços, sugere-se acessar o link do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e o site Arquiguia Rio.

Quando se analisa o período Vargas (1930-1945), principalmente o período de gestão do Ministro Gustavo Capanema e de seu chefe de gabinete Carlos Drummond de Andrade à frente do MES, percebe-se uma forte parceria entre esse Ministério e vários intelectuais brasileiros de diferentes correntes ideológicas, mas estranhamente todos engajados, às suas maneiras, para a construção de um ideal nacional e disponíveis a prestar serviço ao MES, como ficou pactuado de forma tácita entre esses modernistas brasileiros no início do século XX.

Como nasceu o MES? O governo Vargas criou um projeto conjunto de educação e saúde, fruto da pressão da população, que há décadas reivindicava atendimento de saúde e escola pública e gratuita para a classe trabalhadora e seus filhos. No aspecto da educação, o ensino público e laico foi encabeçado por Anísio Teixeira e Fernando Azevedo; as escolas religiosas, sobretudo as católicas, tiveram como representantes Alceu Amoroso Lima e Dom Elder Câmara, pensadores de um projeto educacional para escolas confessionais. Também institucionalizou a proteção ao patrimônio histórico e artístico nacional por ideia dos intelectuais que trabalhavam no Ministério, tendo à frente dessa iniciativa, em um primeiro momento, Mário de Andrade, sucedido por Rodrigo de Melo Franco. A coroação desse projeto se deu com a edificação do prédio do MES. Nesse sentido, o projeto arquitetônico tinha que refletir a modernidade dos altos mandatários do Ministério e de Vargas. Assim, em 1934, houve um concurso para a construção do prédio. Anos depois, a proposta ganhadora foi recusada devido ao seu caráter conservador. Com isso, os arquitetos Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, entre outros, foram contratados para trabalhar a partir de um novo projeto idealizado por Le Corbusier. O planejamento e a construção levaram vários anos. Em 1945, no último ano da ditadura varguista, houve a inauguração do prédio, sendo essa a primeira edificação de arquitetura moderna na América do Sul, que foi construída durante o esforço de guerra brasileiro. Isso posto, é necessário destacar que o prédio possui inventariadas aproximadamente 30 obras de arte pertencentes ao seu conjunto arquitetônico/artístico. São estátuas, painéis de azulejos e afrescos de autoria de Cândido Portinari, Celso Antônio, Bruno Giorgi e Jacques Lipchitz.

Sobre as obras de arte, 22 são de Portinari. Elas têm características técnicas e temáticas muito peculiares, pois algumas são murais a têmpera, murais de azulejos, painéis a óleo sobre tela ou afrescos, todos com dimensões de vários metros quadrados. Mais especificamente, os afrescos têm uma temática que contextualiza a vida econômica do Brasil desde o período colonial até os anos 1930. Essas 12 imagens, que compõem a série dos ciclos econômicos, estão localizadas no salão Portinari, espaço que até hoje é usado para eventos dos mais diversos no Ministério.

Figura 1: No Salão Portinari, 12 afrescos representam ciclos econômicos brasileiros. Foto: Alexandre Macieira/Riotur.
Figura 2: Salão Portinari, Artespace Editors, agosto de 2016.

Dessas 12 obras, resolvi abordar apenas duas para colaborar com uma reflexão introdutória sobre arte, arquitetura e política em obras de Portinari.

Como se pode observar na obra Pau-Brasil (Figura 3), o artista decidiu fazer um indígena sem seus adornos e sua pintura corporal. Identifica-se facilmente que é um autóctone pelo corte de cabelo arredondado e a cor da pele. O grupo de seis homens desmata uma floresta usando machados que, devido aos seus formatos, fazem referência às ferramentas de metal europeias. A postura corporal é altiva, forte e firme. Veem-se os pés e as mãos à Portinari, ou seja, uma deformação de tamanho e proporção em relação à altura da pessoa, transformando o indivíduo em alguém mais forte. Não se vê nenhum símbolo de coerção ou castigo, assim, infere-se que estão na atividade extrativa de bom grado. Também não há registro do destino final das toras, mais uma vez se deduz, com base nos conhecimentos prévios de história colonial, que as árvores seriam exportadas para uma nação europeia, Portugal ou França, e delas seriam extraídos os produtos para o tingimento de tecidos.

Figura 3: Pau-Brasil, Cândido Portinari, 1938. Fonte: Site Itaú Cultural.

No afresco Algodão (Figura 4), temos uma mulher e uma criança afrodescendentes em primeiro plano, colhendo o chumaço de algodão e, ao fundo, há três homens de mesma etnia, curvados, trabalhando para ensacar o produto. Da mulher também curvada não se vê o rosto, porém a criança olha o observador de frente com seu vestido azul e algodão nas mãos. Nota-se a desproporção dos pés e das mãos das pessoas adultas e uma leve desproporção nos membros inferiores da criança que, por sua vez, não tem alteração de tamanho das suas mãos. Nessa imagem se nota a repetição de pessoas pretas no trabalho em lavoura, representação que Portinari já fazia desde o início dos anos 1920. Esse contexto de trabalho fora conhecido pelo pintor na infância, pois trabalhara na lavoura junto aos pais, imigrantes italianos e colonos em Brodowski. Lembrando que em uma sociedade como o Brasil dos anos 1930 e 1940 havia uma valorização da ideologia do trabalho duro, da labuta como algo que forma o caráter e os cidadãos, além de não haver o combate ao trabalho infantil. Em vários sistemas políticos nesse mesmo período no mundo, como no realismo soviético e na estética nazista, havia uma valorização dessa ideologia e a criminalização de atitudes rotuladas como vagabundagem ou malandragem. Por isso, não havia uma valorização, por exemplo, de rodas de samba dentro da edificação do MES. É importante recordar que as religiões de matrizes africanas também eram bastante perseguidas. Assim, entende-se que durante a Era Vargas há uma repetição desses valores afeitos ao trabalho, contra a vadiagem, boemia e religiosidade afro-brasileira.

Figura 4: Algodão, Cândido Portinari, 1938. Fonte: Site Itaú Cultural.

A lista de afrescos passa pela atividade mineradora, pela manufatura do ferro, pela criação de animais e por vários tipos de lavouras, sempre mostrando homens e mulheres no trabalho duro, mas com uma imagem altiva. Essas imagens são percebidas como uma celebração da força e do esforço dessas atividades que formam a história econômica do Brasil.

O Salão Portinari é uma exaltação ao homem e à mulher como trabalhadores resilientes. Há uma indicação dos valores socialistas de Portinari, pois nitidamente se inspirou no muralismo mexicano para compor a série. Mesmo sendo um comunista, a estrutura de poder montada pelo governo Vargas conseguiu absolver um artista crítico do seu governo, fazendo um paralelo bem interessante com a forte repressão que o regime varguista fez ao comunismo no final dos anos 1930. Não há nenhum afresco sugerindo uma organização de trabalhadores ou possiblidade de revolução socialista.

Antes da pandemia, o administrador do Condomínio do Palácio Gustavo Capanema (sede do antigo MES) afirmou que o edifício recebia por mês algo perto de quarenta mil visitantes – detalhe: esse número não está somado aos visitantes dos jardins do prédio. Hoje, o prédio recebe estudantes das mais diversas idades para visitar o espaço interno, as obras de arte, os jardins e para participar de eventos culturais. O edifício perdeu o status de uma simples autarquia do serviço público federal e se tornou um monumento ao modernismo e ao nacionalismo. Lugar importante para a história política e da arte brasileira.

Referências:

Imagens

Figura 1: MACHADO, Sandra. Palácio Gustavo Capanema é marco divisório na história da arquitetura do país. In: MULTIRIO: mídia educativa da cidade, Rio de Janeiro, 07 Março 2018. <http://www.multirio.rj.gov.br/index.php/leia/reportagens-artigos/reportagens/13618-pal%C3%A1cio-gustavo-capanema-%C3%A9-marco-divis%C3%B3rio-na-hist%C3%B3ria-da-arquitetura-do-pa%C3%ADs>. Acesso em: 27/01/2021.

Figura 2: Artspace Editors. Le Corbusier in Rio: Inside the Americas’ First Modernist Masterwork. In: Artspace, New York, AUG. 4, 2016. <https://www.artspace.com/magazine/art_101/book_report/corbusier-in-rio-54068> Acesso em: 27/01/2021.

Figura 3: Pau-Brasil (1938) – Pintura mural a afresco, 280 x 250 cm. Assinada e datada na metade inferior direita “C. PORTINARI 1936-1944”. Coleção Palácio Gustavo Capanema, Rio de Janeiro, RJ. PAU-BRASIL. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2021. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra44409/pau-brasil>. Acesso em: 27/01/2021. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7.

Figura 4 e Figura Ilustrativa: Algodão (1938) – Pintura mural a afresco, 280 x 300 cm. Sem assinatura e sem data. Coleção Palácio Gustavo Capanema, Rio de Janeiro, RJ. ALGODÃO. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2021. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra44423/algodao>. Acesso em: 27/01/2021. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7.

Textos

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Vídeos

Palácio Gustavo Capanema – Bloco 1. [Produzido por] TV ALERJ, Sem data, vídeo, (7 minutos e 2 segundos). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=A0djDI03s7k>. Acesso em: 26/01/2021.

Palácio Gustavo Capanema – Bloco 2. [Produzido por] TV ALERJ, Sem data, vídeo (8 minutos e 52 segundos). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Zn5_9fJ-0Ks>. Acesso em: 26/01/2021.

Palácio Gustavo Capanema – Bloco 3. [Produzido por] TV ALERJ, Sem data, vídeo (7 minutos e 37 segundos). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=t7JqbP3mAOs>. Acesso em: 26/01/2021.

Palácio Gustavo Capanema – Patrimônio Nacional. [Produzido por] IPHAN RJ, 13 de março de 2013, vídeo (12 minutos e 10 segundos). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=p2DUgFmOo0E>. Acesso em: 26/01/2021.

Arquiteturas: Palácio Gustavo Capanema. [Produzido por] SESC RJ, 30 de outubro de 2014, vídeo (46 minutos e 58 segundos). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=vb0DdFHTIZA>. Acesso em: 26/01/2021.

Sobre o autor:

Alexandre Ventura é professor de História da Arte no Cefart – FCS, graduado em História pela UFMG e mestre em História Social pela PUC-SP.