Farnese de Andrade, a memória nos objetos e a saudade

Um Click de Cultura desta semana tem valor sentimental. Apresentaremos um pouco do trabalho de Farnese de Andrade, nascido em 1926, em Araguari (MG). Farnese migrou de Minas para o Rio de Janeiro e ganhou o mundo com sua obra ímpar no cenário da arte brasileira. Em agosto deste ano, o Centro de Formação Artística e Tecnológica (Cefart) e a Fundação Clóvis Salgado (FCS) se despediram do professor Paulo Peixoto, docente e mediador cultural na Instituição, um apaixonado e profundo conhecedor de Farnese e de sua obra. Em 2016, o Palácio das Artes recebeu a mostra “Farnese de Andrade – arqueologia existencial” e, com grande paixão, Paulo recebeu o público com informações preciosas e compartilhou com os colegas seu acervo farnesiano, que tanto enriqueceu as mediações no período dessa exposição.

A obra de Farnese molda objetos, os desloca e os recria em signos produzindo composições que, se causam, em alguma medida, estranhamento, também são bastante familiares em suas citações às tradições mineiras, costumes e memórias, lidando com ex-votos, oratórios, imagens sacras e recortes de bonecas. Suas disposições, criadas a partir de fragmentos de elementos retirados do esquecimento, permeiam opostos que se complementam, como dor e amor, melancolia e regozijo, calmaria e caos. Farnese concilia a dramaticidade barroca com o despojamento moderno envolvendo tradição e regionalismos, utilizando materialidades diversas em suas assemblages com acabamentos refinados.

Os relicários com bonecas mutiladas, de olhos vazados, com as cabeças cortadas, braços, troncos e pernas seccionados, que são marcantes em sua obra, assustam em um primeiro contato, é verdade. Mas, se olhadas mais atentamente, podem ser uma ponte para compreendermos a intimidade do artista: as castrações ao longo da vida, passados e futuros não vividos, sentimentos negados, vontades reprimidas, rastros de existências não concretizadas.

Tudo continua sempre, Farnese de Andrade, 1974. Foto: Catálogo da exposição Farnese de Andrade – arqueologia existencial.

Em suas colagens de objetos resgatados e colecionados, Farnese convida o espectador a olhar para dentro, a cutucar e a expurgar seus próprios fantasmas junto ao expurgo do homem-artista. O professor Paulo, assim como Farnese, era um colecionador. Reunia bonecos e miniaturas de super-heróis, revistas em quadrinhos, livros e catálogos de arte, organizando em prateleiras o seu universo particular. Mais do que coisas, Paulo soube colecionar amigos, sorrisos, laços de afeto, carinho e muitos abraços apertados. Cada um de nós, com nossas manias e personalidade, monta coleções, cria um arquivo pessoal de dramas e graças e, no fim, se toda essa junção de elementos cotidianos não se tornar objetos de arte, de alguma forma, serão reciclados em lembranças e saudade.

Sobre a autora:

Isa Carolina é especialista em História da Arte, mediadora cultural e professora na Escola de Artes Visuais do Cefart – FCS.