Modernismo e denúncia social

Quando analisamos as várias décadas de contribuição do modernismo vemos que as críticas sociais, em particular no Brasil do início do século XX, encontraram inúmeras obras relevantes de artistas, como Portinari, por exemplo. O nome de Tarsila do Amaral sempre é lembrado pela obra Operários, de 1930, em que representa a diversidade étnica vista na pintura pela mão de obra urbana de São Paulo, no início da Era Vargas.

A partir dos anos 1930, Tarsila cria obras nas quais os traços infantis e o engajamento com a construção da nacionalidade ficam cada vez mais evidentes, seja pelo seu interesse na União Soviética e no marxismo ou pela pobreza que assolava o Brasil, temas em voga na época.

Na obra 2ª Classe observa-se, em primeiro plano, famílias em uma estação de trem.  São cinco crianças, uma adolescente, três mulheres adultas e dois homens. Ao fundo, três figuras, uma moça com uma criança de colo e um homem mais velho de barba, a única pessoa “só” na cena, ou melhor, sem um parente ao lado. A cena pode se dar em qualquer plataforma de qualquer estação de trem do país em 1933. Percebe-se como pano de fundo o vagão de passageiros com a inscrição 2ª CLASSE, em destaque. As pessoas têm um aspecto triste, subnutrido, com as roupas alinhadas, bem passadas, sem rasgos ou remendos, contudo não há sapatos. Os pés descalços com os rostos tristes e desanimados, a falta de malas e os poucos embrulhos denunciam a pobreza. Não há como saber se é o embarque ou o desembarque. A única interpretação possível do destino dessas pessoas fica pelo fato de terem deixado muito pouca coisa para trás. Ainda pensando nesse aspecto da obra, existem quatro objetos nas mãos das pessoas, permitindo questionar: qual é o significado desses objetos para quem deixa parte da sua vida para trás em busca de melhores condições? Quanto de afetivo ou materialmente importante existe nesses objetos? Ou será que são alimentos?

 

Figura 1: 2ª Classe, Tarsila do Amaral, 1933.

 

As crianças desse quadro exemplificam uma preocupação antiga de Tarsila do Amaral: há uma constância de crianças e famílias em suas obras. Ao contrário dos anos 1920, em que pintava crianças e suas famílias em momentos lúdicos, religiosos ou simplesmente passeando, nessa obra de 1933 a artista as representa em um aspecto comportamental de tristeza e desnutrição, com corpos esquálidos e fragilidade gritante. Mesmo estando ao lado dos pais ou no colo da mãe, a expressividade negativa choca. E o espanto se intensifica quando vemos que as crianças têm uma feição de adulto, a representação é de olhos caídos e desanimados, rostos fantasmagóricos. O único ponto positivo é que os pais em meio à pobreza não perdem o cuidado com os filhos menores. As mãos dadas e a criança de branco no centro evidenciam esse aspecto. O zelo também pode ser percebido na forma como as mãos agarram os pequenos embrulhos que carregam junto ao peito.

A crítica social antecipa uma discussão acadêmica dos anos futuros do Brasil, pois é uma representação dos modos de vida precário das pessoas em vários aspectos visíveis, principalmente ao êxodo rural feito sem planejamento. São fugitivos de uma zona rural e de uma situação de miséria, em busca de uma vida melhor na “cidade grande”.

Dois anos depois outra obra de Tarsila do Amaral, menos divulgada que 2ª Classe, retorna ao tema da infância. Na obra Crianças a pintora representa um orfanato e também uma pequena aglomeração com doze crianças. Os coloridos das roupas, da parede e das flores da janela compondo o cenário chamam muita atenção. Existem crianças calçadas e descalças.  Vemos um brinquedo entre as duas meninas em primeiro plano. As crianças e o cachorro em torno da freira passam uma sensação de harmonia, acentuada pela menina em primeiro plano com uma flor nas mãos e um semblante de felicidade e tranquilidade. Na representação de crianças nesta obra, observam-se traços, gestos e feições mais aproximadas de uma possível harmonia. Também se percebe esse equilíbrio em um elemento que chama atenção na cena: uma freira facilmente identificável pelo seu véu em forma de cornette e um rosto de feição calma.

 

Figura 2: Crianças [Orfanato], Tarsila do Amaral, 1935.

 

Como todo documento histórico é fruto do seu tempo, as duas obras retratam a situação de vulnerabilidade e cuidados das crianças nos anos 1930, sendo a primeira obra mais pessimista e a segunda otimista, pois se vê a reversão da vulnerabilidade.

Por fim, a pintora antecipa uma nova forma de crítica social, muito mais ampla, diferente do viés econômico.

 

 

Alexandre Ventura é professor de História da Arte no Cefart – FCS, graduado em História pela UFMG e mestre em História Social pela PUC-SP.

 

 

Referências:

Imagens

Figura 1 – AMARAL, Tarsila do. 2ª Classe, óleo sobre tela, 110.00 cm x 151.00 cm, 1933, coleção Fanny Feffer. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra2484/2a-classe>. Acesso em: 29 de Mai. 2020. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7

Figura 2 – AMARAL, Tarsila do. CRIANÇAS [Orfanato], óleo sobre tela, 97.50 cm x 140.00 cm, 1935, Coleção particular. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra1636/crianças-orfanato>. Acesso em: 29 de Mai. 2020. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7

Textos

AMARAL, Aracy A. Artes plásticas na Semana de 22. São Paulo: Perspectiva, 1972.

________. Tarsila: Sua Obra e Seu Tempo – Vol. 2. São Paulo: Perspectiva /Ed. da USP, 1975.

AMARAL, Tarsila do. Desenhos de Tarsila (de 1919 aos Anos 50). Belo Horizonte: [s.n.], 1970. 28p. (Catálogo de exposição, 22 de maio – 30 de junho de 1970, Museu de Arte da Prefeitura de Belo Horizonte).

PEDROSA, Adriano, OLIVA, Fernando, [et. al]. Tarsila Popular. São Paulo: MASP, 2019.

ZÍLIO, Carlos. A querela do Brasil: a questão da identidade da arte brasileira. Rio de Janeiro, Relumé – Dumará, 1997.