Proposta artística e de militância de Jaider Esbell

Em 2 de novembro de 2021, o mundo das artes foi surpreendido com a morte prematura de Jaider Esbell, artista indígena da etnia Macuxi. Nascido no estado de Roraima em 1979, passou a infância na reserva Raposa Terra do Sol, graduou-se em Artes Plásticas e Geografia pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), e fez pós-graduação em Gestão Ambiental e Desenvolvimento Sustentável pela Faculdade de Tecnologia Internacional, tendo custeado os estudos com seu salário de funcionário público.

Jaider Esbell era possuidor de uma forte ancestralidade, que se manifestou tanto em sua vida como em suas obras. Era um artista de múltiplas facetas: performer, escritor, curador, produtor cultural, galerista, professor, crítico de arte e militante das causas indígenas. Ou seja, ocupou todos os fazeres artísticos de alguém consciente dos problemas de um povo e de seu país.

Sua obra fortemente identitária nunca passou pela discussão totalizante de ser rotulada como arte indígena ou classificada como artefato ou artesanato. Há em suas peças um traço próprio e de seu povo. Foi um dos principais nomes deste cenário de jovens artistas, produtores e curadores indígenas do país, em conjunto com Denilson Baniwa, Daiara Tukano, Yocunã Tuxá, Edgar Kanay Kõ, Xakriabá, Ibã Huni Kuin, Naine Terena, Uýra Sodoma, Gustavo Caboco, entre outros.

Por ter estado ainda em um processo de consolidação de carreira, participou de poucas exposições coletivas e individuais, passando a ganhar visibilidade do grande público nacional a partir de 2016 com o prêmio PIPA, concedido pela fundação de mesmo nome, como também por participar do CURA (Circuito Urbano de Arte) em 2020 e da 34ª Bienal de Arte de São Paulo – “Faz escuro, mas eu canto”, realizada este ano.

Tanto no CURA de 2020 como na 34ª Bienal de São Paulo de 2021, Jaider propôs a realização de uma intervenção urbana com grandes cobras infláveis denominadas “Entidades”. Em Belo Horizonte, no ano passado, Jaider Esbell colocou as peças em interação com os arcos do Viaduto Santa Tereza – sobre a via de carros – gerando um impacto interessante na paisagem.

Ao observar a obra, percebia-se que era resultado de uma pesquisa artística apurada. As peças confeccionadas com grafismos e traços indígenas dialogavam com os arcos do viaduto, com a fachada do prédio da Serraria Souza Pinto, com as árvores do Parque Municipal Américo Renné Giannetti e com a obra “Ajo y Vino”, pintada pela artista argentina Milu Correch na empena do edifício Garagem São José. Uma inusitada integração entre obras arquitetônicas, paisagísticas e visuais com traços e temporalidades totalmente diferentes.

Figura 1: “Entidades”, Jaider Esbell, instalação inflável, 1700 cm X 150 cm de diâmetro, 2020. Fonte: site do CURA-BH (Circuito Urbano de Arte – Belo Horizonte).

Ao anoitecer era possível perceber, ainda, a interação da instalação “Entidades” com as luzes do viaduto, fazendo uma inferência às lendas nortistas do Boitatá e/ou Boiúna.

Figura 2: “Entidades”, Jaider Esbell, instalação inflável, 1700 cm X 150 cm de diâmetro, 2020. Fonte: site do CURA-BH (Circuito Urbano de Arte – Belo Horizonte).

Devido ao seu tamanho monumental (17 metros) e à iluminação interna, algumas crianças e adultos que tiravam “selfies” junto à instalação associavam-na à lenda amazônica do Boitatá, uma cobra de fogo protetora dos animais e da fauna, da floresta. Outros a associavam à lenda de Boiúna, mais propriamente aos filhos de Boiúna, Cobra Norato e Maria, também denominados Cobra Honorato e Maria Caninana.

Figura 3: “Entidades”, Jaider Esbell, instalação inflável, 1700 cm X 150 cm de diâmetro, 2021. Fonte: Levi Fanfan/ site da Fundação Bienal de São Paulo.

Para a 34ª Bienal de Arte de São Paulo, Jaider Esbell propôs a instalação das cobras sobre o espelho d’água do Parque do Ibirapuera, dando outra potência a elas.

O fazer artístico de Jaider Esbell começou a ser notado para além do circuito de arte de Roraima em 2016, a partir de uma série de 16 desenhos denominada “It was Amazon”. Nessa época, Jaider percorreu vários estados com sua arte chamando atenção para os problemas que as populações tradicionais enfrentam e para o desmatamento. O desenho, quase infantil, é usado para mostrar situações de extrema violência. As obras denunciam a grilagem, a pecuária extensiva, o tráfico de drogas, a violência no campo, entre outras tensões em terras amazônicas. 

Figura 4: Sem Título, obra da série “It was Amazon”, Jaider Esbell, desenho sobre papel. Fonte: site do artista.

Apesar dos esforços, observa-se que existe até hoje no sistema das artes uma estrutura eurocêntrica, masculina e ligada à valorização monetária das obras de um grupo pequeno de artistas. Na direção oposta, artistas indígenas, afrodescendentes e trans buscam por territórios de visibilidade para suas produções dentro de uma nova proposta para esse sistema. Uma característica marcante e comum no fazer artístico dessas “minorias” é não perder a conexão com o seu passado e sua ancestralidade, ressignificando-a. Isso pois as origens sociais ameríndias não se alicerçam em valores como propriedade privada, produção em larga escala, consumismo e exploração de mão de obra, por exemplo. Ao contemplarmos as obras dessa nova geração de artistas, vê-se um fazer coletivo, enraizado na cultura dos povos tradicionais, em seus mitos, religiosidades, lendas e modos de vida.

Com a morte prematura de Jaider Esbell, perde-se uma potente voz no discurso de proteção ambiental, um olhar crítico sofisticado no mundo das artes e uma possibilidade de sermos surpreendidos por obras de artes criativas. Mesmo muito jovem, seu acervo pessoal deixa um forte legado para o povo Macuxi, para as crianças dessa etnia e para todos os artistas descendentes dos povos originários. Descanse em paz!

Referências:

Imagens

Figura 1: ESBELL, Jaider, “Entidades”, instalação inflável, 1700 cm X 150 cm de diâmetro, 2020. In: CURA-BH (Circuito Urbano de Arte – Belo Horizonte). Disponível em: ˂https://cura.art/index.php/portfolio/jaideresbell/˃. Acesso em: 29 out. 2021.

Figura 2: ESBELL, Jaider, “Entidades”, instalação inflável, 1700 cm X 150 cm de diâmetro, 2020. In: CURA-BH (Circuito Urbano de Arte – Belo Horizonte). Disponível em: ˂https://cura.art/index.php/portfolio/jaideresbell/˃. Acesso em: 29 out. 2021.

Figura 3: ESBELL, Jaider, “Entidades”, instalação inflável, 1700 cm X 150 cm de diâmetro, 2021. In: 34ª BIENAL Internacional de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal, 2020. Disponível em: ˂http://34.bienal.org.br/artistas/7339˃. Acesso em: 29 out. 2021.

Figura 4 e Figura Ilustrativa: ESBELL, Jaider, Sem Título, obra da série “It was Amazon”, desenho sobre papel, [S.D.]. In: ˂http://www.jaideresbell.com.br/site/2016/07/01/it-was-amazon/˃. Acesso em: 29 out. 2021.

Textos

34ª BIENAL Internacional de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal, 2020. Disponível em: ˂http://34.bienal.org.br/exposicoes/7311˃. Acesso em: 15 jul. 2021. Exposição realizada no período de 04 set. 2020 a 05 dez. 2021.

DINIZ, Clarissa. Street fight, vingança e guerra: artistas indígenas para além do “produzir ou morrer”. Espaço Ameríndio, Porto Alegre, v. 14, n. 1, p. 68-88, jan./jul. 2020.

GALERIA Jaider Esbell. Sobre o artista. Disponível em: ˂http://www.jaideresbell.com.br/site/sobre-o-artista/˃. Acesso em: 29 out. 2021.

GARCIA, Giulia. Jaider Esbell e uma apresentação através do jenipapo. In: Revista Arte Brasileiros, 23 mar. 2021. Disponível em: ˂https://artebrasileiros.com.br/arte/exposicoes/apresentacao-ruku-jaider-esbell-galeria-millan/˃. Acesso em: 22 jul. 2021.

JAIDER Esbell. Prêmio Pipa – A janela para a arte contemporânea brasileira. Disponível em: ˂https://www.premiopipa.com/pag/jaider-esbell/˃. Acesso em: 29 out. 2021.

JAIDER Esbell. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2021. Disponível em: ˂http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa641366/jaider-esbell˃. Acesso em: 14 nov. 2021. Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7

LAGROU, Els. Arte indígena no Brasil. Belo Horizonte: C/Arte, 2009.

Sobre o autor:

Alexandre Ventura é professor de História da Arte no Cefart – FCS, graduado em História pela UFMG e mestre em História Social pela PUC-SP.