Ready-mades duchapianos e a reprodução de ideias

Marcel Duchamp, artista francês nascido em 1887, é considerado o “pai da arte contemporânea”. Ele criou os “ready-mades”, gênero de arte em que objetos utilitários industrialmente produzidos atingem o estatuto de arte por meio dos processos de seleção e apresentação. No ano de 1917, Duchamp enviou para o Salão da Associação de Artistas Independentes em Nova York seu primeiro ready-made: um urinol de louça que denominou “Fonte”. Esse gesto audacioso teve sérias consequências no curso da arte do século XX.

Em 1914, ao visitar uma exposição de indústria naval em Paris, Duchamp teria se entusiasmado com a beleza de uma hélice de navio e dito aos amigos e artistas Fernand Léger e Brancusi, que com ele lá estavam, que a pintura estava condenada, afinal, como criar algo tão belo como aquela hélice? Essa admiração pela coisa industrial foi a abertura para o processo de construção dos ready-mades, juntamente com uma crise das artes artesanais diante da industrialização.

Duchamp desloca o foco do que seria belo nas artes para um olhar que compartilha dos avanços das tecnologias, da comunicação e da industrialização como algo belo em si. Seguindo essa perspectiva, o artista trabalhou ao longo de sua carreira com a constante análise – muitas vezes sarcástica – dessa crise, resultando em produções como “Roda de bicicleta”, em que uma roda justaposta com um banco “desfuncionaliza” os dois objetos em questão, construindo um novo que se torna a obra de arte.

“Roda de bicicleta”, Marcel Duchamp, 1913. Fonte: Wikiart.

Ao construir seus ready-mades, Duchamp subverte as regras das artes plásticas elevando a ideia, o projeto do artista, em detrimento do objeto em si. Não existe mais a necessidade de um objeto artístico que seja belo, mas que seja uma amálgama discursiva para uma reflexão complexa sobre a cultura, sobre o pensamento artístico, as relações entre significante e significado, as relações entre o objeto e o local onde está inserido e seu deslocamento de função.

Essa irreverência duchampiana deixou herdeiros que estão vivos até os dias atuais. Em uma constante tentativa de comunicação mais direta entre a arte e a vida, numa negação da arte como algo belo e ideal, os não-objetos de Duchamp e/ou a arte desmaterializada conceitual, por exemplo, têm sido vistos de forma recorrente e de inúmeras maneiras nos circuitos culturais. A arte contemporânea, cada vez mais, se apega aos deslocamentos de objetos e apropriações e citações da cultura pós-moderna em suas produções artísticas.

Os ready-mades duchampianos tentaram abolir ou, pelo menos, desconstruir ou destituir de sua importância valores como originalidade, autenticidade, unicidade e beleza sobre os objetos artísticos. No entanto, na contramão disso, em tempos como o que vivemos, em uma era digital em que é possível reproduzir ideias com mais velocidade, pode-se notar uma democratização da história da arte menos intelectual e mais dinâmica e divertida em muitas releituras de obras de Leonardo da Vinci, Veermer ou Van Gogh, por exemplo. Artistas que, ironicamente, possuíam os valores da originalidade, da unicidade e da beleza construída na potência poética do artista. Talvez os ready-mades de Duchamp nos lembrem, constantemente, que criar seja algo mais elevado, único, e que reproduzir seja algo meramente humano.

Referências:

ELGER, Dietmar. “Dadaísmo”. Tashen, 2004.
GULLAR, Ferreira. “Os urinóis de Marcel Duchamp”. Ilustrada, Folha de São Paulo. 06 de maio de 2007.

Sobre a autora:

Isa Carolina é especialista em História da Arte, mediadora cultural e professora na Escola de Artes Visuais do Cefart – FCS.