ARTE CONTEMPORÂNEA: “Caos arte”, um reflexo da descrença

Em 1917 o artista francês Marcel Duchamp adquiriu um urinol de porcelana e o assinou com o pseudônimo de “R. Mutt”. Está aí um marco transformador para aquilo que, até então, era considerado obra de arte. Posicionada de maneira invertida da sua forma funcional de receptáculo de dejetos humanos, “A fonte” não mais recebe urina, mas libera ideias, reflexões e pensamentos. Um ano antes, em Zurique, surgiu a vanguarda moderna chamada de Dadaísmo, onde artistas manifestavam a descrença no homem. Eram tempos de guerra (1ª Guerra Mundial, 1914-1918) e a insegurança, a estagnação cultural e a revolta geraram a negação da realidade, grande participação social-política e evasão.

A fonte, 1917, Marcel Duchamp.

 Percorrendo a história da humanidade podemos notar que horrores ocorridos por disputa de poder, território, religião, ideologias e diferenças étnicas e raciais costumam manchar o mundo com o vermelho do sangue derramado por inocentes e que tais intolerâncias causam repercussões que culminam em mudanças drásticas em toda parte. Não poderia ser diferente com as artes visuais e outras linguagens artísticas. A Arte Contemporânea advém de movimentos radicais que rompem com padrões no campo da estética, redefinindo o conceito de arte. Duchamp levou ao máximo essa redefinição estabelecendo questionamentos de arte pela arte. A partir dele não mais se afirma nada em relação às artes visuais, passa-se a discutir questões como: se há um distanciamento entre o extraordinário e o ordinário, se há o que possa qualificar algo como obra de arte ou não, e a real função das realizações no campo das artes. Nesse novo contexto, a arte não é funcional ou utilitária, é ideia, reflexão, filosofia e o artista é o projetor, o arquiteto dessas ideias. A arte agora não mais é religiosa ou profana, bela ou um estudo formal, é um diálogo constante com a ciência, a política e os signos da vida humana.

A Arte Contemporânea começa a partir da contracultura trafegando na contramão da cultura oficial. É um rótulo dado com o advento da Pop Art em fins da década de 1950 numa crítica ao consumismo e ao capitalismo americano. O movimento nasce dos excessos da sociedade capitalista e é caracterizado pelo desenvolvimento da cultura de massas (mass-media), especialmente a publicidade, o design e a moda, que geram consumo, ideologia capitalista e alienação. É natural que, com esse contexto, as artes passassem a não mais se manifestar apenas com as técnicas clássicas, por excelência, como a pintura e a escultura. Aparecem trabalhos com variação de materiais e objetos e brota a ideia da reprodução, da cópia, da cópia, da cópia. A obra de arte não é mais peça única, exclusiva. Ela é grafada, fotografada, espalhada em diversos meios que não somente as galerias e os museus, acompanhando a cultura da comunicação e dos enlatados e eletrodomésticos “robotizados”, que reestruturam as casas e se tornam desejáveis, facilitando a vida moderna repleta de novidades. Atualmente, com a Internet e as redes sociais, isso ainda é mais complexo e mais efêmero, refletindo a frivolidade, a futilidade e a superficialidade das relações e do consumo imediato por imagens. A Pop Art produz “filhotes” que buscam criticar os mitos do cotidiano da geração otimista pelo progresso e vítima da síndrome da degradação. Movimentos como o Minimalismo que trabalha o conceito de “menos é mais” e a Arte conceitual que vai fundo na ideia de que arte é linguagem, desprezando a obra em si e priorizando o planejamento (projeto), representam o real através de signos e não mais com estruturas formais e/ou narrativas. A base da arte, que era estética, se transforma em algo filosófico, em semiótica, em sentenças linguísticas. No Brasil, a Pop Art se desdobra como Nova Figuração Brasileira e vemos a progressão para a Arte Conceitual destacando a questão interativa, participativa do espectador com as obras de arte e o surgimento de canais de abordagens dos conceitos para fora das galerias. Além das experimentações sensoriais correntes nesse novo contexto artístico, nota-se no país manifestações gráficas advindas das periferias, como os grafites, tomando cada vez mais força, algo que aconteceu nos anos 1980 nos guetos americanos.

Uma e três cadeiras, 1965, Joseph Kosuth. Exemplo de arte conceitual dos anos 1960.

Podemos perceber que não há ainda uma conclusão definitiva para a Arte Contemporânea. Ela é fruto do ventre do caos gerado pelos rastros de gerações onde a autoridade está em crise, a utopia falida e o sujeito fragmentado. Nessa fragmentação vemos uma expectativa de integração onde a coletividade vale mais do que o indivíduo num paradoxo que se faz eminente em tempos de globalização que se distorce em individualidade e numa tentativa de superação de períodos e estilos que buscaram essa mesma superação. A todo  momento o homem deseja superar a si mesmo, a cada década, século, milênio, contudo, no caos vigente, acaba se exaurindo e chegando a pontos iniciais da eterna procura de um lugar para pertencer.

Arte Contemporânea é, demasiadamente, discursiva. É um complexo de vazios, de desordem e caos, que nos leva a refletir, cada vez mais, sobre a constante transformação das coisas no mundo, mas para onde está indo essa transformação, afinal?

 

 

Isa Carolina é especialista em História da Arte, professora e mediadora cultural na Escola de Artes Visuais do Cefart – FCS.