Um grito atemporal

Em um diário, antes de criar a primeira versão da obra “O Grito”, Edvard Munch escreveu: “Eu estava caminhando pela estrada com dois amigos quando o sol se pôs, de repente o céu ficou vermelho como sangue. Eu parei e me encostei contra a cerca me sentindo incrivelmente cansado (…). Os amigos continuaram andando enquanto eu ficava para trás tremendo de medo. Então, ouvi o enorme grito infinito da natureza”. Diante dessa narração, parece que a figura pintada que grita sobre uma ponte seria o próprio pintor, que estava passeando pela Colina Ekeberg, em Oslo, capital da Noruega, quando teve algo como um surto de pânico. Um ano após essa situação, em 1893, Munch pintou “O Grito”. Após a criação dessa obra, que se encontra no Museu Nacional de Oslo, seguiram-se inúmeras versões dela em pinturas, desenhos e litogravuras.

A pintura é construída por linhas sinuosas e muito movimento gestual, causando uma sensação de ansiedade e desordem. Elas são como o ecoar do berro desesperado do protagonista da cena, nos direcionando para as figuras coadjuvantes. As pinceladas bem evidentes, as distorções das formas e o uso de cores marcantes eram características de pinturas expressionistas daquela época.

“O Grito”, Edvard Munch, 1893.

Podemos dizer que o grito agonizante na pintura é atemporal. Até hoje, e talvez principalmente hoje, essa explosão atormentada e silenciosa represente sentimentos que muitos de nós estamos vivenciando com o isolamento e o receio da epidemia da COVID-19. A eclosão do novo Coronavírus trouxe muitas consequências desastrosas, como o desemprego em massa, leitos de hospitais lotados, depressão e ansiedade.

Podemos fazer um paralelo do nosso tempo com o período em que a pintura foi realizada e que evocava sentimentos parecidos, por causa das mudanças advindas da Revolução Industrial, do progresso e da atribulada e competitiva vida em tempos modernos. O homem contemporâneo vem gritando em silêncio todos os dias para cumprir as demandas exigidas pela vida moderna. Não bastasse a pressão de ter que acompanhar as transformações radicais que o mundo vem passando com as novidades tecnológicas, o avanço da ciência e as novas relações de trabalho, ainda precisamos lidar com uma pandemia e suas implicações políticas, econômicas e científicas.

O grito de Munch nunca foi tão atual. É um retrato do nosso tempo, uma reação ao céu vermelho, a uma turbulência interior que colide com a turbulência do mundo exterior. No entanto, devemos acreditar que, assim como a arte de Munch e de tantos outros nomes que ultrapassam gerações com suas narrativas atemporais, todos nós precisamos ser capazes de ultrapassar a agonia com a esperança em dias melhores e a crença em um futuro saudável. 

Referência:

ULRICH, Bischoff. Munch. Editora Tashen, 1997.

Sobre a autora:

Isa Carolina é especialista em História da Arte, mediadora cultural e professora na Escola de Artes Visuais do Cefart – FCS.