Yêdamaria: sutileza, refinamento e elegância

Yêdamaria, nome artístico de Yeda Maria Correia de Oliveira, é a única filha do casal de classe média Elias Félix de Oliveira e Theonila da Silva Correa. A baiana Yêdamaria nasceu no tumultuado ano de 1932. Desde cedo demonstrou aptidão para as artes, contudo só entrou na Escola de Belas Artes aos vinte e sete anos de idade, em 1959. Antes disso, seguiu os passos da mãe, atuando como professora de educação primária, atividade que começou aos dezenove anos.

A artista nasceu em Salvador – cidade mais negra da América – e morou dois anos em Chicago. Ao contrário dos grandes nomes das artes visuais afro-brasileiras como Mestre Didi, Rubem Valentim e Emanoel Araújo, que pesquisam e produzem sobre a Bahia e a África, Yêdamaria dirige sua atenção também para as manifestações da negritude norte-americana. Assim, as obras de Yêdamaria têm fontes e símbolos engajados na luta pelos direitos civis da população afro-americana.

Em 1956, ainda como estudante de artes, foi premiada em um Salão Baiano de Arte começando assim sua trajetória profissional. Suas obras figurativas sempre refletiram a devoção por Iemanjá, seja através de ligações e referências ao mar, seja com a representação de figuras femininas, sereias, peixes e o próprio mar, em alusão à divindade. Outra marca característica das obras de Yêdamaria são as naturezas mortas, essas – que analisaremos mais à frente – carregam consigo uma crítica social.

No decorrer da década de 1960, seu trabalho, que contava com um engajamento político por meio das religiões de matriz afro-brasileira, recebeu uma nova camada de envolvimento político em alusão à luta pelos direitos civis dos afro-americanos, principalmente com a presença da imagem do pastor Martin Luther King em suas obras. Destaca-se que Chicago – mesmo no norte dos Estados Unidos – é tida como uma cidade de forte presença da população afro-americana e um dos berços da luta por direitos.

No início dos anos 1970, tornou-se professora da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia e ao final da década entrou no programa de mestrado da “Art Studio” da Universidade Estadual de Illinois, nos Estados Unidos.

Ao observarmos a produção de Yêdamaria nos deparamos com uma grande quantidade de naturezas-mortas, gênero da pintura que desde o início do século XVI foi consagrado como uma prática para estudos de luz, textura, cor e demais componentes técnicos da pintura. Observa-se nas telas de Yêdamaria muitas mesas postas para as mais diversas refeições, como cafés da manhã, almoços e jantares. Sempre há uma celebração de festas.

Na tela “Café no jardim” (Figura 1) observa-se uma mesa posta sobre uma toalha clara em padrão xadrez, com frutas, pães e sucos, tendo como fundo flores em tons vermelhos. As cores amarelas “ficam por conta” do suco servido na jarra, distribuídos em duas taças. Há outras flores em tons semelhantes de amarelo.

Figura 1: “Café no jardim”, Yêdamaria, 1994, óleo sobre tela, Coleção Anna Maria C. Padilha. Fonte: livro “Yêdamaria”
 

Percebe-se a característica clássica de uma natureza-morta: o estudo da cor, luz e textura; todavia a obra desperta uma sensação e um desejo de sentar-se à mesa, de ser a pessoa que vai usufruir das iguarias servidas. A pintura remete a obras impressionistas do final do século XIX, pois tem-se a sensação de tranquilidade, de organização, de prazer em fazer aquela refeição. Como o senso comum afirmaria: “parece uma mesa de café da manhã de novela”.

Quando se observa a obra “Café da manhã” (Figura 2), percebem-se os mesmos recursos da anterior, porém com um fundo de cor neutra, dando destaque às taças, jarras, bule e xícara. Em primeiro plano há frutas amarelas, podendo ser pêssegos, laranjas ou mexericas. Ao fundo, gerando um contraste de cores, vê-se à direita uma garrafa de suco e à esquerda um pão em cor terrosa. Na parte inferior da tela há duas vasilhas com geleia em tons mais avermelhados, escuros.

Figura 2: “Café da manhã”, Yêdamaria, 1998, litografia, Coleção Augusto César Lacerda. Fonte: livro “Yêdamaria”
 

Dessa vez o número de taças e o recorte da imagem mais fechado faz com que não se tenha ideia de “quantas pessoas se sentarão à mesa”. A artista focou nos detalhes do aparelho de porcelana bem como na transparência e na reflexão da luz das taças. Pensando na trajetória de Yêdamaria, nas mudanças sociais que experimentou entre os anos de 1932 e 2000, são várias as indagações que as obras trazem, nos ajudando a compreender a sociedade brasileira e soteropolitana do final do século passado.

Experimentando um grande crescimento urbano, as refeições à mesa – em família – como um momento de conversa, de carinho, de reflexões sobre o cotidiano e sobre a vida vieram paulatinamente caindo em desuso. Cedeu-se lugar a refeições rápidas, o excesso de trabalho e compromissos desengajou as famílias das refeições diárias em conjunto. Yêdamaria, com a delicadeza dessas mesas postas, criou uma representação de uma classe média brasileira, mais especificamente de uma classe média afro-brasileira.

As naturezas-mortas representaram ao longo da história das artes visuais ostentação de um padrão de vida, pois frutas exóticas, com cores extravagantes, custavam caro no século XVII, de modo que ou o pintor estava em outro continente que não a Europa, ou representava um grupo social de elite. A proposta de Yêdamaria está muito mais voltada para o carinho, para a calma e a tranquilidade, já que os objetos retratados não têm valor elevado e como as mesas são postas e para quem são postas é que são os verdadeiros valores da obra.

No óleo sobre madeira denominado “Jantar para uma convidada especial” (Figura 3), Yêdamaria pinta os convidados em primeiro plano com uma mesa farta e colorida na parte inferior da tela, tendo ao fundo um quadro com flores coloridas. Se de modo geral as taças, copos, talheres e xícaras são os objetos mais detalhados em suas naturezas-mortas, nesta obra o importante são os sorrisos, o clima de descontração do encontro social, de uma classe média afro-brasileira muito pouco retratada em obras de arte. Tem-se Cândido Portinari e Carybé pintando pessoas afro-brasileiras em várias situações laborais, de lazer, de apresentações artísticas, rodas de capoeiras, celebrações religiosas, mas não se vê a classe média em suas obras.

Figura 3: “Jantar para uma convidada especial”, Yêdamaria, 1983, óleo sobre madeira, Coleção Universidade Federal da Bahia. Fonte: livro “Yêdamaria”

Essa rara representação de uma classe média negra, culta e sorridente tem mesa posta com alusões à Iemanjá e ao candomblé, como, por exemplo, o peixe e a garrafa de champanhe. Lembrando-se que, no início do século XX, a população afro-brasileira estava ainda mais distante de superar os problemas de pobreza e baixo acesso à escola provocados pelos séculos de escravidão.

O óleo sobre madeira da figura 4 se intitula “Homenagem a dois de fevereiro”, fazendo referência à data de celebração de Iemanjá. É sua obra de maior dimensão, também sendo um diálogo com o início de sua carreira, em que retratava barcos. Porém, nessa obra Yêdamaria agrega novos valores e temas, como o feminismo. Além, é claro, da persistente abordagem da luta contra o racismo, valorizando Iemanjá.

A obra igualmente colorida é uma vista do mar com um corpo de sereia em primeiro plano e em sua cauda retratos de aproximadamente vinte mulheres, nem todos legíveis, podendo se fazer a leitura de uma violência física contra as mulheres ou mesmo o apagamento da história de vida de algumas. Na parte de cima do corpo da sereia há vinte e duas estrelas. Na parte superior do barco encontram-se quatro barcos navegando com o céu ao fundo. Dois barcos trazem oferendas, o mesmo se vê na parte inferior da tela, repleta de flores. Entre o corpo da sereia e as flores há vários peixes coloridos. Pensando na etimologia da palavra Iemanjá temos em iorubá a palavra “Yèyé omo ejá”, que significa “mãe cujos filhos são como peixes”. Infere-se que é mais uma alusão à rainha do mar.

Figura 4: “Homenagem a dois de fevereiro”, 1995, óleo sobre madeira, Coleção Banco do Brasil. Fonte: livro “Yêdamaria”
 

Yêdamaria, mesmo tendo uma carreira longa, diversificada e combativa a seu modo, é pouco lembrada no Brasil do século XXI. Seu livro só foi publicado devido à interferência de Emanoel Araújo junto a Imprensa Oficial, uma editora do Estado de São Paulo. Essa artista pode ser tranquilamente enquadrada como uma participante da segunda geração modernista no Brasil. Apesar disso, há bem menos referência a seu nome do que a colegas contemporâneos. Mesmo se passando seis anos de seu falecimento, visitou-se muito pouco seus ricos trabalhos.

Referências:

Imagens

Figura 1 e Ilustrativa: YÊDAMARIA. Café no jardim, óleo sobre tela, 129 cm X 141 cm, 1994, Coleção Anna Maria C. Padilha. In: YÊDAMARIA. Yêdamaria. São Paulo: Museu Afro Brasil, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006, p. 141.

Figura 2: YÊDAMARIA. “Café da manhã”, litografia, 45 cm X 50 cm, 1998, Coleção Augusto César Lacerda. In: YÊDAMARIA. Yêdamaria. São Paulo: Museu Afro Brasil, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006, p. 97.

Figura 3: YÊDAMARIA. “Jantar para uma convidada especial”, óleo sobre madeira. 180 cm X 156 cm, 1983. Coleção Universidade Federal da Bahia. In: YÊDAMARIA. Yêdamaria. São Paulo: Museu Afro Brasil, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. p. 87.

Figura 4: YÊDAMARIA. “Homenagem a dois de fevereiro”, óleo sobre madeira, 600 cm X 460 cm, 1995, Coleção Banco do Brasil. In: YÊDAMARIA. Yêdamaria. São Paulo: Museu Afro Brasil, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006, p. 21.

Textos

NATUREZA-MORTA. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2022. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo360/natureza-morta. Acesso em: 08 de outubro de 2022. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7

YÊDAMARIA. Yêdamaria. São Paulo: Museu Afro Brasil, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.

YEDAMARIA. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2022. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa267833/yedamaria. Acesso em: 06 de outubro de 2022. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7

Sobre o autor:

Alexandre Ventura é professor de História da Arte no Cefart-FCS, graduado em História pela UFMG e mestre em História Social pela PUC-SP.