A viagem como método de pesquisa modernista: Tarsila, Oswald e as cidades de Minas

Prosseguindo com os debates a respeito do centenário da Semana de Arte Moderna e seus desdobramentos e dando seguimento ao tema viagem e modernismo, iniciado há algumas semanas nesse blog, far-se-á uma breve análise sobre a viagem dos modernistas paulistas a Minas Gerais, mais propriamente um diálogo entre as produções de Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade. Em 1924, quando o movimento Pau-Brasil surgiu, os dois artistas formavam um casal e desenvolviam uma parceria temática em seus trabalhos.

O primeiro intuito da “Viagem de Descoberta do Brasil” era tomar parte nas festas religiosas de abril de 1924. Na Semana Santa, em sua festa, as cidades históricas encenam o passado que os paulistas estavam procurando. O primeiro contato desses viajantes com as cidades com casario do século XVIII se deu nesse contexto. Vale apontar que, nessa ocasião, a cidade se altera, tendo seu “momento máximo” nos dias desse feriado. O cotidiano da população orienta-se em função dos cultos religiosos, que reorganizam habitualmente toda a comunidade no sentido desses cerimoniais. São João e Tiradentes, assim como os lugarejos próximos, transformam-se em cenário para as procissões; e esses ambientes parecem ter sido propícios às intenções de registro dos viajantes.

O grupo de intelectuais paulistas tinha como interesse principal nessa viagem conhecer as cidades com prédios do século XVIII durante as celebrações religiosas. Houve outra compreensão proposta, a de que principalmente Oswald e Tarsila assistiram à Semana Santa não só como um período de celebrações da morte e ressurreição de Cristo, ou seja, não só como um acontecimento religioso católico, mas também como uma festa nacional.

Com Oswald de Andrade, a postura nacionalista foi apresentada de uma forma direta em um dos seus poemas, como visto na poesia “Semana Santa”:

“Semana Santa

A matraca alegre

Debaixo do céu de comemoração

Diz que a Tragédia passou longe

O Brasil é onde o sangue corre

E o ouro se encaixa

No coração da muralha negra

Recortada

Laminada

Verde”

Aqui, nesse poema curto, Oswald está preocupado em compor um cenário alegre para a Semana Santa. A matraca, símbolo de tristeza e reflexão sobre a paixão e morte de Jesus, torna-se alegre. “Debaixo do céu de comemoração / Diz que a Tragédia passou longe”. Esse trecho valoriza a euforia da festa, uma singularidade – na sua visão – nascida no período da colonização portuguesa. Propõe, por meio desse poema, dizer dos festejos da nacionalidade brasileira nascida em Minas Gerais, segundo Oswald. O jogo de ambiguidades formulado nos versos continua com “O Brasil é onde o sangue corre”, afirmando a violência da escravidão contra a população africana escravizada.

No poema “Procissão do Enterro”, o poeta Paulista escreve dando um relato rápido, até mesmo telegráfico, dos fiéis que compõem as representações e dramatizações do cortejo fúnebre.

“Procissão do Enterro

A Verônica estende os braços

E canta

O pálio parou

Todos escutam

A voz da noite

Cheia de ladeiras acesas”

Sobre os cenários onde acontecem as procissões e a força interpretativa dos atores nas cenas, descreveu-os como os percebeu no poema “Simbologia”. Relato minucioso dos cabelos, trajes, gestuais, musicalidade, sentimento dos atores, posição do elenco durante as cenas e cores do figurino.

“Simbologia

Abraão tem bigodes pretos

E sabia que Deus colocava o Anjo atrás dele

Isaac é inocente pequeno e nuzinho

Os homens que carregam o caixão

Estão todos de branco

E descalços

O soldado romano

É zangadíssimo

E tem cabelo na cara

O padre saiu para a rua

De dentro de um quadro antigo”

Os momentos poéticos “Cheia de ladeiras acesas / O padre saiu para a rua / De dentro de um quadro antigo” deixam no ar a ideia de que a festa religiosa é importante, mas o cenário histórico onde ela se desenrola é também fundamental para a nacionalidade. É como se a noite ganhasse voz.

Oswald de Andrade retorna à temática da lua na poesia “Sábado de Aleluia”, na qual os versos surgem acompanhados de outros elementos também muito importantes para Oswald.

“Sábado de Aleluia

Serpentes de fogo procuram morder o céu

E estouram

A praça pública está cheia

E a execução espera o arcebispo

Sair da história colonial

Longe vai tempo soltaram a lua

Como um balão de dentro da serra

Judas balança caído numa árvore

Do céu doirado e altíssimo

Jardins

Palmeiras

Negros”

O poeta se utilizou de uma metáfora muito bonita para falar dos fogos de artifício. Ele menciona a lua cheia de Páscoa, comparando-a aos balões das festas juninas, formando um cenário com a serra para a malhação do Judas.

Quando escreveu “A praça pública está cheia / E a execução espera o arcebispo / Sair da história colonial” fazendo referência direta à igreja do século XVIII como sendo a própria história colonial acontecendo em 1924, Oswald dá ideia aos leitores de que o tempo parou. Assim, participar da Semana Santa em São João Del Rei e Tiradentes faria com que os fiéis se tornassem participantes da história nacional desenrolada durante o período da América portuguesa.

Nos três poemas destacados acima se percebe alguma referência à morte, ao sofrimento, à penitência, algo próprio da Semana Santa e da escravidão.

Com essas preocupações, observam-se atentamente as produções de Tarsila do Amaral. Percebe-se que era importante para a pintora registrar as imagens da procissão da Semana Santa em São João Del Rei e em Tiradentes. Aracy Amaral, no volume dois de sua tese de doutorado (p. 72-74), cita os títulos de sessenta e seis desenhos feitos por Tarsila durante a viagem. As denominações são muito ilustrativas da importância da cerimônia religiosa.

“São João del–Rei (sic): cerimônia litúrgica”

“Na igreja: Semana Santa”

“Padre na rua e paisagem de estrada”

“Procissão em Tiradentes e estudos”

“Procissão em Tiradentes com Verônica”

“Matriz de Tiradentes”

Tarsila também tem a sua contribuição sobre o tema “Semana Santa em Minas Gerais”. Quando se olha esses títulos dados por Tarsila a seus desenhos durante a viagem, fica a impressão da importância do cenário histórico circundado pelo natural singelo. Para se debater melhor essa afirmação, analisar-se-á dois dos desenhos de Tarsila.

A figura 1, denominada “Procissão em Tiradentes com Verônica”, e a figura 2, um grafite sobre papel – um duplo – intitulado “São João Del Rei, MG, 1924” e “Casa de Pedra, 1924”, desenho com duas imagens distintas retirado de um catálogo de exposição da pintora.

Figura 1: “Procissão em Tiradentes com Verônica”, Tarsila do Amaral

No primeiro desenho, o ponto principal da cena para Tarsila está na liturgia cristã, nos símbolos da Procissão do Jesus Morto, que se realizam todas às Sextas-Feiras da Paixão. A aglomeração de pessoas foi esboçada de uma maneira rápida, com traços ligeiros, tendo como resultado final uma imagem fantasmagórica. Percebem-se os soldados romanos, que Oswald definiu em seus versos como zangadíssimos, e o padre na frente do cortejo. Contudo, o quadro antigo não aparece de uma forma convencional, pois as pessoas que participam da procissão com suas fantasias tomam às vezes de cenário no desenho de Tarsila. Basta olharmos os capacetes e lanças dos soldados, as coroas e os andores da procissão, que as figuras tomam forma de um cenário. As pessoas participantes estavam em segundo plano para o desenho de Tarsila.

Nos estudos isolados desse mesmo desenho, Verônica (no centro) quase fica irreconhecível. Infere-se que é ela, pois está desenrolando diante aos fiéis a imagem de Jesus no tecido. Os desenhos masculinos ficaram mais nítidos, mesmo assim o observador da obra não sabe qual foi a participação deles no cortejo. Tarsila retrata a cena, mas as pessoas ficam nebulosas. No canto inferior direito há uma santa em seu andor.

O segundo esboço importante para a discussão é o “São João Del Rei, MG, 1924” e “Casa de Pedra, 1924”, pois nele aparece – em primeiro plano – o casario da cidade. Como fala Oswald de Andrade: a procissão estava “dentro de um quadro antigo”. A preocupação de Tarsila não estava apenas na representação do cortejo, mas nas pessoas comuns que acompanham a procissão, e também nas palmeiras e árvores ao fundo. Há um destaque muito grande para as portas, janelas e telhados das casas. Ela representou a aglomeração de tal maneira que fica a ilusão de um grande cortejo. No desenho da casa de pedra só aparece o ponto turístico.

As imagens das pessoas continuam fantasmagóricas, mas com uma característica infantil. Percebe-se as indumentárias da procissão (o Santíssimo e o estandarte com o símbolo da irmandade).

Figura 2: “São João Del Rei”, MG, 1924 e “Casa de Pedra”, 1924, Tarsila do Amaral

Dada a aglomeração, o número de pessoas retratadas, a festa era popular e tradicional. O desenho passa uma ideia de força e união, contudo as pessoas só compõem o cenário.

As imagens e poesias sublinham a conjugação entre a natureza singela, a arquitetura do século XVIII e as procissões, cortejos e missas da Semana Santa. Essas expressões artísticas põem para seus leitores a ótica peculiar com que Oswald e Tarsila olhavam a celebração de Páscoa.

Existe um diálogo entre desenhos e poemas nas temáticas a respeito da Semana Santa, na abordagem sobre morte e sofrimento, mas, sobretudo, na velocidade. Tanto os poemas quanto os desenhos dão a sensação de rapidez. Há escritos curtos e telegráficos e imagens de traços rápidos, quase como instantâneos para uma memória ou pesquisa artística.

No tocante a viagem como método de pesquisa pelos três modernistas paulistas que viajaram a Minas Gerais em 1924, mais do que romper com temáticas e técnicas acadêmicas nas mais diferentes linguagens, realizou-se uma alteração substancial na pesquisa artística. Assim, as edificações do século XVIII, as igrejas católicas do mesmo período, seus construtores, sobretudo as peças religiosas, passaram a ser vistas como fonte de inspiração artística modernista, pois se buscava resgatar um passado grandioso.

Referências:

Imagens

Figura 1 e Ilustrativa: Tarsila do Amaral, Lápis s/ papel, 31 X 22,2 AMARAL, T. Série viagem a Minas. In:Desenhos de Tarsila. SP: Cultrix, 1971. Prancha 3.

Figuras 2: Tarsila do Amaral, Grafite / papel, 31 X 21,5. (S. João Del Rei, Tarsila, T. 24), intitulado (Casa de Pedra) monogr. datado (T.24) no c. i.e.. AMARAL, T.Desenhos de Tarsila do Amaral. RJ: [s.n.], 1985. P.36. (Catálogo de exposição, ago/set,).

Poesias

ANDRADE, Oswald. Semana Santa. In: ANDRADE, Oswald. Pau‑Brasil (Obras Completas). SP: Ed. Globo/Secretaria de Estado da Cultura, 1990. P. 128.

________, Procissão do Enterro. Ibidem. p. 128.

________, Simbologia. Ibidem. p. 128‑129.

________, Sábado de Aleluia. Ibidem. p. 129.

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Sobre o autor:

Alexandre Ventura é professor de História da Arte no Cefart – FCS, graduado em História pela UFMG e mestre em História Social pela PUC-SP.