Carybé: quotidiano de Salvador em meados do século XX

Carybé é o nome artístico de Hector Julio Páride Bernabó, um argentino radicado em Salvador, que viveu seus primeiros anos na Itália e depois, já na adolescência, voltou a residir no Brasil. Como jornalista, rodou o mundo até se fixar nos anos 1950 em Salvador. Carybé foi um artista plástico de vasta produção, tendo desenvolvido sua arte em várias técnicas, como: aquarela, óleo sobre tela, escultura, gravura e serigrafia. Ele tinha uma verdadeira predileção por murais e painéis, pois, segundo o artista, era uma obra para os outros, ou seja, de visualização pública.

Foi ilustrador de alguns livros de Jorge Amado e em conjunto com o fotógrafo francês Pierre Verger, entre outros intelectuais, apresentou em suas obras a cultura baiana. Carybé tem catalogado algo próximo de cinco mil obras, muitas delas sobre o candomblé e a umbanda. Aqui interessa-nos obras com outras temáticas do quotidiano soteropolitano. Há também um número vasto de obras sobre os sertanejos do interior da Bahia, dos ribeirinhos do São Francisco, dos pescadores das praias baianas, entre outros modos de vida e territórios: Carnaval, bares, feiras e rodas de samba.

Neste texto, far-se-á um recorte de apenas cinco obras em que aparecem aspectos usuais e ordinários que compõem os modos de vida da população local entre os anos de 1950 e 1980. Carybé se mostrou sempre atento ao quotidiano baiano, assim, é comum encontrar obras com temas a respeito da capoeira. Às vezes têm-se a roda completa encravada em uma parte da cidade, outras só um detalhe do confronto. No óleo sobre madeira denominado “Capoeira”, o artista representa uma cena bem típica, o confronto entre dois homens. O que está em pé tem sua imagem congelada durante um golpe, talvez seja a Benção. Já seu adversário está em uma postura que pode ser interpretada como Negativa, ou seja, a esquiva, o que pode indicar que tenha sido atingido.

Assim como as religiões de matriz afro, a capoeira também foi largamente perseguida por autoridades policiais em todo o Brasil, que, em nome do racismo estrutural, proibiam as rodas e perseguiam os capoeiristas para evitar a associação e a união desses praticantes. Esse quotidiano de confronto entre afrodescendentes praticantes da capoeira e autoridades persistiu por décadas.

Figura 1: “Capoeira”, Carybé, óleo sobre madeira, 1966. Fonte: Museu Regional de Arte.

No aeroporto de Salvador, encontra-se um painel em óleo sobre tela denominado “Manifestações culturais da Bahia”. Definitivamente não é sua obra mais interessante, pois está cheia de estereótipos machistas com mulheres nuas celebrando o Carnaval, cenas do sertão baiano com um vaqueiro derrubando um bovino, pescadores e uma roda de capoeira. As imagens não dialogam entre si, há divisões na composição do painel, deixando o nacionalismo e o regionalismo fazerem as conexões entre as imagens.

Figura 2: “Manifestações culturais da Bahia”, Carybé, 1984. Fonte: FURRER, 1989.

Há um sem número de obras de Carybé sobre rinhas de galos. Pelo visto, essa contravenção era parte do quotidiano das ruas de Salvador. Na obra “Galo de Briga” se vê dois homens de chapéus, um em primeiro plano com roupas claras e outro ao fundo de vestimenta escura. A figura em primeiro plano tem no colo um galo. A curiosidade fica por conta de mulheres nuas abaixo do local onde as pessoas estavam assentadas. Deduz-se, a partir disso, que o local é uma janela e se observa um porão ou quarto. A obra é datada de 1981, cerca de exatos vinte anos após a proibição da rinha de galo, indicando que essa prática parece ter persistido. Contravenção essa que é baseada em apostas e na derrota, quase sempre por fatalidade, de um dos animais.

Figura 3: “Galo de Briga”, Carybé, 1981. Fonte: Museu Afro Brasil, 2006.

Na figura 4, “Sem Título”, temos várias interações entre as oito mulheres que estão na cena. Em primeiro plano, há um homem vendendo uma jaca e um peixe. Esse feirante é a única pessoa na imagem que não interage com ninguém. Muito provavelmente é um ambulante com pouca mercadoria para vender, pois não havia como investir mais dinheiro em uma diversificação de produtos ou em quantidade.

Figura 4: “Sem Título”, Carybé, sem data. Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural.

Na obra “Cena de Rua”, vê-se um recorte mais pobre da cidade, com poucas construções, sendo essas bem precárias. Há pessoas caminhando em todas as direções bem como vários tipos de interações entre homens e mulheres. Os animais do lado direito da imagem esperam a conversa dos donos encerrar enquanto outros dois cachorros passam pela rua. Não há calçamento ou qualquer sinal de arruamento ou, ainda, quaisquer sinais de postes de luz.

Figura 5: “Cena de rua”, Carybé, 1994. Fonte: Museu Afro Brasil, 2006.

Independente da classe social e da etnia, as pessoas nas obras de Carybé são elegantes, vestem roupas coloridas e quase sempre estão descalças. Essa maneira de representar os corpos pretos se consagrou na forma de se retratar as celebrações e os ritos afro-brasileiros.

Mesmo não sendo brasileiro de nascimento e tendo vivido em vários países, Carybé segue a missão modernista de construir uma identidade nacional. Em suas obras, percebe-se um interesse crescente sobre a população afro-brasileira da Bahia, destacando-se a cultura, a população mais pobre, as roupas coloridas, as aglomerações e os movimentos corporais elegantes.

Referências:

Imagens

Figura 1 e ilustrativa: CARYBÉ. Capoeira. Óleo sobre madeira, 54,5 x 57,5 cm, 1966. In: Museu Virtual Museu Regional de Arte (MRA) – Centro Universitário de Cultura e Arte (Cuca), 2021. Disponível em: <http://www.feirahoje.com.br/museuvirtual/paginas_publicadas/3caribe_capoeira.htm>. Acesso em: 23 de Jun. 2021

Figura 2: Carybé. Manifestações culturais da Bahia. Óleo sobre tela, Painel de 2,8m x 5m, 1984. In: FURRER, Bruno. Carybé. Salvador, Fundação Odebrecht, 1989.

Figura 3: Carybé. Galo de Briga. Vinil, 50 x 36 cm, 1981. In: Museu Afro Brasil. O universo mítico de Hector Julio Paride Bernabó, o baiano Carybé. São Paulo, Museu Afro Brasil, 2006, p. 252.

Figura 4: CARYBÉ, Sem Título. Serigrafia sobre papel, 48.00 cm x 62.00 cm, [S.D.], acervo Banco Itaú. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2021. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra62060/sem-titulo>. Acesso em: 23 de Jun. 2021. Verbete da Enciclopédia.ISBN: 978-85-7979-060-7

Figura 5: CARYBÉ. Cena de rua. Óleo sobre tela, 1994. Fonte: Museu Afro Brasil. O universo mítico de Hector Julio Paride Bernabó, o baiano Carybé. São Paulo, Museu Afro Brasil, 2006, p. 136.

Textos

CONDURU, Roberto. Arte Afro-brasileira. Belo Horizonte: C/Arte, 2007.

FURRER, Bruno. Carybé. Salvador, Fundação Odebrecht, 1989. 452p.

HEBEISEN, Paulo K. (ORG.). O jogo da capoeira. Salvador, Livraria Turista,1951 (Coleção Recôncavo nº3). Disponível em: <http://velhosmestres.com/br/waldemar-1951-1>. Acesso em: 23 de Jun. 2021.

LODY, Raul. Dicionário de Arte Sacra & Técnicas Afro-brasileiras. Rio de Janeiro: Pallas, 2003.

MATTOS, Regiane Augusto de. História e cultura afro-brasileira. São Paulo, Contexto, 2016.

Museu Afro Brasil. O universo mítico de Hector Julio Paride Bernabó, o baiano Carybé. São Paulo, Museu Afro Brasil, 2006.

Museu de Arte Moderna da Bahia. O Museu de Arte Moderna da Bahia. São Paulo, Banco Safra, 2008. 358 p.

Sobre o autor:

Alexandre Ventura é professor de História da Arte no Cefart – FCS, graduado em História pela UFMG e mestre em História Social pela PUC-SP.