A goiva da revolta Tupynambá

O grito de dor,

Estou entre o cais,

Correndo ao longe,

Dos campos verdejantes

Pelo de Baio,

Lanço entre o vento,

Maria me acolhe,

A dor já não me contempla,

Recolho-me entre as estrelas

Do cais da dor,

Ergo me em luz,

Da liberdade festeira

Para o meu povo

(PALHANO, 2021)

Yara Tupinambá, Negrinho do Pastoreio, xilogravura, 65 x 96 cm, Acervo da Fundação Clóvis Salgado.

O processo de construção e elaboração de uma obra de arte perpassa por diversos caminhos até a sua finalização. Analisar uma obra nos leva sempre não só à história que ela retrata, mas também ao povo que viveu enquanto foi produzida. O artista pode optar por técnicas diferentes a serem executadas, utilizando tintas, pincéis, goivas, tecido ou madeira como suporte, para estampar suas percepções de mundo. A obra “Negrinho do Pastoreio” de Yara Tupynambá é sinônimo da técnica alinhada à mensagem que a artista deseja levar ao público. É notória a utilização de goivas (instrumentos cortantes de diversos formatos muito utilizados no processo de criação de xilogravuras) na produção dessa obra em que Yara explora muito bem a temática do Negrinho do Pastoreio, ao lacerar a madeira da mesma forma como a história nos descreve os processos de dilaceração da carne por séculos no Brasil. Em uma obra não encontramos somente cores, profundidade, pinceladas ou entalhes, nós nos deparamos também com a memória do artista, seus conhecimentos, relações afetivas, sensoriais e históricas.

É importante perceber que a gravura de Yara é carregada de simbologias próprias do momento vivido pela artista no processo de produção artístico, porque a obra foi concebida entre as conturbadas décadas de 1960 e 70 no Brasil. Nesse período, o país viveu a ditadura civil-militar implantada em 1964. A artista então se utiliza da penumbra entre os frisos da madeira para nos demonstrar esse momento histórico tão caótico da sociedade brasileira. O personagem aparece deitado com uma expressão de intensa agonia do rosto, olhos esbugalhados cheios de lágrimas, boca coberta de sangue; é quase possível escutar seu grito de horror. Esse semblante é o ponto central da obra, para onde, no primeiro momento, o olhar do espectador está direcionado. Já em um segundo instante, partimos para a contemplação do corpo magro que mantém braços abertos e joelhos dobrados em posição fetal, cobertos de feridas. A artista nos conta uma história além da tradição. 

De acordo com Luís da Câmara Cascudo (1954), a tradição popular do Rio Grande do Sul conta em sua zona pastoril a história de um negrinho que era escravo de um grande fazendeiro rico e mau e que perdeu os cavalos baios que pastoreava, tendo sido, por isso, mandado surrar violentamente pelo amo. Ainda sangrando, atiraram-no dentro de um formigueiro, onde o negrinho faleceu. Em seguida, porém, ele reapareceu, montando um baio, à frente de uma nova tropa invisível, mas identificável pelo som, percorrendo as campinas. O Negrinho do Pastoreio era afilhado de Nossa Senhora, e, a quem lhe promete cotos de velas, ele faz encontrar os objetos perdidos, crença essa que alcança até mesmo as imediações da fronteira de São Paulo. Esporadicamente, aparece um ato de devoção ao Negrinho em outros pontos do Brasil, espalhado pelas famílias gaúchas. É um mito religioso de fundamento católico e europeu, com a convergência de atributos divinos sobre o negrinho martirizado, que foi canonizado pelo povo (CASCUDO, 1954).

Conectando essa tradição ao momento histórico que a artista está então vivenciando, verificamos que Tupynambá transpõe para a madeira toda a angústia e dramaticidade do momento vivido pelo personagem. Embora seja mais comum na iconografia do negrinho que ele se apresente em seu cavalo baio acompanhado de uma vela e/ou de Nossa Senhora, cavalgando pelo pasto, a leitura feita pela artista retrata a dor e o sofrimento. Ele aparece deitado com uma expressão de intensa agonia do rosto, com os olhos esbugalhados cheios de lágrimas e com a boca coberta de sangue onde se percebe o grito de horror. Esse semblante é o ponto central da obra, o primeiro para onde o olhar do espectador é direcionado, para depois ser complementado pelo corpo magro que mantém os braços abertos e os joelhos dobrados em posição fetal, coberto de feridas.

Enquanto seres sociais e de extrema sensibilidade, os artistas são capazes de estampar acontecimentos que a sociedade tende a esquecer. A história por si mesma já imprime no ambiente social a realidade da construção do povo brasileiro, e a arte vem revelar ainda mais o que o coletivo deixa de olhar. Através de seu olhar, Yara nos leva ao outro lado da história, sem focar no momento de vitória do jovem personagem e, sim, no de sua dor. A perda, a identidade, a luz e a sombra, todos os adjetivos da contemplação do sofrimento estampado na criança que está encolhida em suas profundezas. A obra é uma xilogravura em preto e branco, ou seja, apenas o contraste do claro causado pelo entalhe com o escuro da tinta que apresenta as ranhuras da madeira. Ainda que sem o uso das demais cores, Yara, deixando o espaço em branco da figura apenas para os detalhes da pele, consegue evidenciar que se trata de um jovem negro que está no meio do campo, ao ar livre, o que é representado pela árvore; ao fundo, no cais, a simbologia das terras distantes e da liberdade perdida. O entalhar propositalmente grosseiro intensifica a dramaticidade da obra que, para quem conhece a lenda, lembra as cicatrizes que ainda ardem da escravidão – não tão distante – que um dia foi permitida no Brasil. 

Dentro desse contexto, encontramos na obra o sinônimo da angústia sofrida por milhares de negros sequestrados de suas origens e trazidos à força para trabalhar no país. A análise da obra de acordo com uma religiosidade católica em que o flagelo e a humilhação levam à redenção através da purificação vai de encontro à leitura histórica, tornando essa obra crucial para a profundidade das verdades deixadas debaixo das solas dos sapatos de quem ainda tem o olhar obtuso diante dos horrores e sofrimentos do povo africano durante séculos no país.

O historiador da arte Didi-Huberman relata que “[a] imagem não é o campo de um saber fechado. É um campo turbilhonante e centrífugo. Talvez nem sequer seja um ‘campo de saber’ como outros. É um movimento que requer todas as dimensões antropológicas do ser e do tempo […] (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 21). Refletindo sobre a construção do tempo da obra, sua espacialidade e tema, nós nos deparamos novamente com a posição fetal do negro, que irá remeter também a outros horrores vividos pela sociedade mundial e também pelos brasileiros ao tempo de sua produção. Sabe-se que a gravação é datada de 1968, uma vez que essa informação consta em um catálogo do ano seguinte do Museu de Arte de São Paulo, mesma época em que, apesar da promessa de paz do papa Paulo VI, vivemos revoluções, guerras, ditaduras e protestos, além do assassinato de Martin Luther King, da morte do estudante Edson Luís, da passeata dos 100 mil, da prisão dos estudantes da UNE e do protesto dos atletas negros nas olimpíadas de Estados Unidos e México. Todos esses fatores sociais, culturais e políticos de uma forma ou de outra povoaram o imaginário da artista que, com suas ferramentas, registrou nas fissuras a estampa da veracidade de séculos afins de gritos, dores, fugas, chibatadas, humilhações, preconceito e racismo.

Não podemos afirmar que essa impressão (que faz parte do Acervo da Fundação Clóvis Salgado) seja da mesma época, já que a gravura em madeira permite que sejam feitas reimpressões de uma mesma matriz mesmo muito tempo após a gravação, dependendo do seu estado de conservação. A artista, enquanto professora da Escola de Belas Artes da UFMG, chegou a realizar reimpressões de outros gravadores para ensinar a técnica aos seus alunos (LAGE, 2013), podendo ter feito o mesmo com o próprio trabalho. Há uma inscrição abaixo da imagem que diz se tratar da segunda prova da artista, sem revelar quantas outras foram impressas na mesma tiragem ou em que ano. É possível perceber rugas e manchas de umidade e oxidação no papel, principalmente no canto inferior direito; porém, sem ter acesso ao histórico do local em que essa obra foi armazenada antes de ser doada ao Palácio das Artes, a datação segue imprecisa.

Independentemente de suposições, o que, de fato, é preciso dizer é que a arte estampa a realidade social e é primordial na vida de qualquer ser humano, sendo o artista capaz de fazer fluir, entre tantas vertentes, em forma poética, o sangue, a dor, a angústia e a simplicidade, resgatando-nos do senso comum diário que nos assombra e assola.

Referências

ANTONIL, André João. Cultura e Opulência no Brasil. Lisboa: 1711.

CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: EdiOuros Publicações, 1954. p. 610.

DIANA, Daniela. Lenda do Negrinho do Pastoreio. Toda Matéria. 26 de junho de 2019. Disponível em: <https://www.todamateria.com.br/negrinho-do-pastoreio/>. Acesso em: 04 out. 2021.

DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998. 264p.

LAGE, Luciana d’Ávila. Restauração de uma reimpressão de gravura em metal de Padre Viegas de Menezes. Trabalho de conclusão de curso de bacharelado em Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis da UFMG. Belo Horizonte: 2013. 62 p.

NASCIMENTO, Milton. Cais. Clube da Esquina. Paris: Odeon Records, 1972. Faixa 2.

PALHANO, Tatiana. Entre o cais do caos, pastoreio. Belo Horizonte: 2021.

A LENDA DO NEGRINHO DO PASTOREIO. Palácio Piratini. Porto Alegre. Disponível em: <https://www.palaciopiratini.rs.gov.br/a-lenda-do-negrinho-do-pastoreiro>. Acesso em: 05 out. 2021.

PINA, Rute. Nos 50 anos de 1968, relembre 11 fatos que abalaram o mundo. Brasil de Fato. São Paulo: 04 de janeiro de 2018. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2018/01/04/nos-50-anos-de-1968-relembre-11-fatos-que-abalaram-o-mundo>. Acesso em: 05 out. 2021.

PANORAMA DA ARTE ATUAL BRASILEIRA 1969. Museu de Arte Moderna. São Paulo: 1969. Disponível em: <https://mam.org.br/storage/2019/10/panorama-1969.pdf>. Acesso em: 05 out. 2021.

Sobre as autoras

Luly Lage – Bacharela em Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis, especialista em Ensino de Artes, escritora, blogueira e estudante do Curso de Curadoria na Escola de Artes Visuais do Cefart | FCS.

Tatiana Palhano – Licenciada em Artes Visuais e Música. Especialista em Educação Ambiental e História da Arte. Professora de Arte, Música e História da Arte e estudante do Curso de Curadoria na Escola de Artes Visuais do Cefart | FCS.