Arte naïf e a produção de Heitor dos Prazeres

Nestes tempos de Carnaval, nada mais oportuno que fazer uma reflexão sobre samba e artes visuais. Dentre vários artistas brasileiros que pensaram o Carnaval em suas produções, destaca-se o carioca Heitor dos Prazeres, artista visual que viveu intensamente o mundo do samba como um protagonista em blocos, ranchos, rodas e – principalmente – em Escolas de Samba. Isso no efervescente Rio de Janeiro, então Distrito Federal, no início e meados do século XX. Mesmo depois do grande sucesso como compositor sambista, conseguiu construir uma carreira sólida e importante como artista visual a partir do final dos anos 1930.

Heitor dos Prazeres (1898-1966) nasceu em um Brasil recém-republicano, depois de sessenta e sete anos de monarquia. Aquele Brasil carregava ainda fortes traços sociais, econômicos e históricos de um país que foi escravista por trezentos e oito anos.

Heitor cresceu e viveu em torno da zona portuária da capital federal. Ali aprendeu o samba com seu pai, que era marceneiro e clarinetista. A música, então, foi sua primeira linguagem de produção artística. Ele foi cantor, compositor, letrista e instrumentista, tendo circulado no mundo do samba junto de grandes nomes como Cartola (1908-1980), Donga (1890-1974), Sinhô (1888-1930), Paulo Portela (1901-1949) e outros. Heitor pôde ostentar o fato de ter sido fundador da Portela (1923) e da Estação Primeira de Mangueira (1928), ou seja, as duas maiores e mais tradicionais Escolas de Samba do Rio de Janeiro.

Compositor de inúmeras canções, sambas, ranchos e marchinhas, gozou na época de grande prestígio junto ao mundo musical carioca. Das mais de trezentas canções registradas em seu nome, várias descrevem inúmeras situações do cotidiano carioca. Morador do morro, cantava a vida de amores, paixões e sofrimento de homens e mulheres de pele escura, excluídos em uma sociedade segregacionista. Lembrando que o samba, suas rodas e seu universo musical, não eram bem vistos pelas autoridades da república, fato que só começa a mudar no meio dos anos 1930. De seus vários sucessos musicais, o que chegou até os dias de hoje com certa notoriedade é a marchinha “Pierrô Apaixonado”, que compôs com Noel Rosa (1910-1937).

Nesse contexto, Heitor dos Prazeres conseguiu fazer uma transição bem-sucedida do cotidiano das rodas de samba e da boemia para o samba profissional dos espetáculos musicais e que floresceu nos anos 1930, tendo como lugar central o microfone das grandes rádios e também os palcos de cassinos pelo Brasil, com destaque para o Cassino da Urca. Teve suas composições gravadas por importantes intérpretes da época, como Francisco Alves (1898-1952), cantor mais popular do Brasil em seu tempo.

Em certo momento – no final dos anos 1930 – surge o Heitor dos Prazeres pintor, como ele mesmo diz em documentário de curta-metragem que leva seu nome: “a pintura para mim é importante, é uma fuga para minhas mágoas, dos meus sofrimentos, das minhas paixões. Eu me sinto em outro mundo, um mundo sofredor, um mundo gozador, um mundo de felicidade…”.

Como pintor – assim como na música – Heitor não teve educação formal, foi um autodidata. Em ambos construiu uma carreira sólida, nas artes visuais, criando óleos sobre tela ou pintando sobre os mais variados suportes.

Sua obra foi classificada como arte naïf, ou seja, uma pintura guiada pelo sentimento de um artista que não passou pelos bancos das escolas de artes. Exemplo disso são os deslocamentos do carro e do caminhão na obra “Favela” (Figura 1), pois, se continuassem na trajetória sugerida, viriam a colidir. O traço da rua e dos veículos no cenário não possibilita profundidade, havendo apenas linearidade bidimensional. A obra de Heitor dos Prazeres é figurativa e representativa do seu cotidiano: cores, proporções e formas são guiadas pelo sentimento do pintor.

A pintura naïf é também um estilo de arte modernista, contudo, Heitor não circulou nos meios artísticos em questão. Se considerada a idade, poderia ser classificado como um modernista de primeira geração, ou seja, artistas que tiveram suas produções e notoriedade consagradas no final da década de 1910 e início dos anos 1920. Porém, como começa a pintar em algum momento no final dos anos 1930, poderia ser classificado também como um modernista de segunda geração, mas novamente não é o caso. Heitor, mesmo sendo contemporâneo, tendo uma filiação estilística modernista e compromisso temático, não pertencia àquele grupo que tinha como missão construir a identidade nacional.

Em suas obras temos quase um retrato antropológico do cotidiano das pessoas negras do Rio de Janeiro ao longo das décadas de 1940 até meados de 1960. Suas obras são um fragmento e uma versão de uma cidade cosmopolita de meados do século XX.

Ao analisarmos os títulos das obras de Heitor no site “Catálogo das Artes”, percebe-se – em um universo de seiscentas e vinte obras cadastradas – um forte interesse não só pelo mundo do samba e do Carnaval, mas também uma atenção voltada para outros ritmos e contextos como o frevo, as festas juninas, as celebrações religiosas afro-brasileiras e muitos registros sobre o mundo do trabalho na representação de profissionais como lavadeiras, trabalhadores domésticos, vendedores de rua, além de pessoas se deslocando para o serviço. Existe também um contraponto com momentos de lazer, pois há muitas festas, bem como várias obras de pessoas jogando sinuca ou em bares. Predominantemente são pessoas negras de diferentes idades e atividades.

Na tela “Favela” (Figura 1), observa-se um recorte da comunidade e do asfalto, mostrando pessoas de diferentes idades, em seus mais diversos afazeres. Vê-se a ocupação da encosta, os casebres coloridos, o grande número de pessoas, suas tarefas profissionais e crianças brincando.

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Figura 1: “Favela, Heitor dos Prazeres, 1965,óleo sobre tela. Foto: Antonio Rudge. Fonte: site da Enciclopédia Itaú Cultural

Talvez o que mais chame a atenção na obra seja as roupas coloridas das mulheres, em parceria com um casario também muito colorido, bem como a elegância das mesmas e dos homens.

Na obra “No morro” (Figura 2), Heitor retrata uma cena comum de precariedade dessas comunidades: a fila para pegar água, na bica, pois não havia água encanada. As três mulheres conversam na fila enquanto esperam. Há cinco latas à frente delas, um homem carrega duas latas e outra mulher – vestida de verde – se encontra assentada junto à fonte de água, enquanto uma quinta – vestida de tom vermelho – carrega uma bacia na cabeça. Um menino solta sua pipa colorida em segundo plano e ao fundo há uma planta, talvez milho.

Figura 2: “No Morro”, Heitor dos Prazeres, [S.D.], óleo sobre cartão, Coleção Sergio Sahione Fadel. Foto: Dimitri Lambru. Fonte: site da Enciclopédia Itaú Cultural

Nas obras visuais de Heitor dos Prazeres se encontram diversos registros de rodas de samba em diferentes cenários, reproduzindo variadas formações musicais. Há obras em ambientes fechados, porém, parece existir um fascínio particular pelas representações de grupos de sambistas em lugares públicos: ruas, quintais e praças. Há também um grande número de obras com títulos semelhantes ou parecidos, como “Roda de Samba”, “Samba”, “Samba no Canavial”, “Samba no Terreiro”, “Sambistas”, “Folia”, entre outras, demonstrando como os ambientes da música, do Carnaval e do samba eram importantes para o artista.

Em “Roda de Samba” (Figura 3), há um grupo de seis pessoas tocando e dançando em um quintal no fundo de uma casa de uma comunidade. Elas estão vestidas com roupas bem coloridas e alinhadas, criando um contraste com o solo do lugar. A cena acontece de dia, tornando as cores ainda mais vibrantes.

Figura 3: “Roda de Samba”, Heitor dos Prazeres, 1965, óleo sobre tela. Foto: Oskar Sjörstedt. Fonte: site da Enciclopédia Itaú Cultural

Nesse contexto de vasta obra musical e visual é possível tecer um diálogo entre versos de uma de suas músicas mais famosas e um quadro de óleo sobre madeira.

Em 1957, compôs e cantou “Vem pro samba, mulata”, samba de versos curtos e simples:

“Vem pro samba, mulata / Cai no samba, mulata / Vem pro samba, mulata / Cai no samba, mulata / Vem pro samba, mulata / Cai no samba, mulata / Mulata vem pro samba / Sacode o seu babado / Mulata cai no samba / Segura o sapateado / E depois não vá dizer / Que o cantador está errado / E depois não vá dizer / Que o cantador está errado.”

Na obra de 1959, “Mulata” (Figura 4) representou-se uma mulher negra de cabelos presos por uma faixa de tecido da mesma cor da roupa, com brincos dourados e um colar de pérolas grandes e brancas, acrescentando elegância e beleza ao conjunto.

Figura 4: “Mulata”, Heitor dos Prazeres, 1959, óleo sobre madeira, Coleção Gilberto Chateaubriand – MAM RJ. Foto: Fábio Ghivelder. Fonte: site da Enciclopédia Itaú Cultural

Pela forma como se refere aos personagens musicais e modelos retratados em suas obras, nota-se uma forte valorização dos seus iguais, das pessoas que moravam em comunidades pobres do Rio de Janeiro. Há sempre uma celebração, uma felicidade no ar, independente das dificuldades da vida, uma válvula de escape da realidade de muito trabalho, poucas oportunidades e baixa remuneração.

É muito raro encontrar um compositor com mais de trezentas músicas gravadas que também conseguiu igual sucesso no sistema das artes visuais, pois, ainda vivo, conseguiu expor nos principais salões e bienais do Brasil, conquistando prêmios e menções. Hoje (fevereiro de 2023), existem listadas no site do Itaú Cultural cento e seis exposições coletivas e individuais contendo obras suas.

Por fim, há uma coincidência entre o fato de sua pintura começar a ser desenvolvida no final dos anos 1930 e ganhar corpo e visibilidade em meados da década seguinte, momento de gestação das ideias de Léopold Sédar Senghor e Aimé Césaire, pais da concepção de “negritude”: conceito filosófico, político e estético de valorização da África, do seu povo, das suas expressões culturais que fundamentou vários movimentos de independência dos países africanos nas décadas que se seguiram.

Referências:

Imagens

Figura ilustrativa: HEITOR dos Prazeres. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2023. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa10428/heitor-dos-prazeres>. Acesso em: 09 fev. 2023. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7

Figura 1: Dos Prazeres, Heitor. “Favela”, óleo sobre tela, c.i.d.130,00 cm x 96,00 cm. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2023. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra4656/favela>. Acesso em: 07 fev. 2023. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7

Figura 2: Dos Prazeres, Heitor. “No Morro”, óleo sobre cartão, c.i.d., 35,00 cm x 27,00 cm, Coleção Sergio Sahione Fadel. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2023. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra9254/no-morro>. Acesso em: 07 fev. 2023. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7

Figura 3: Dos Prazeres, Heitor. “Roda de Samba”, óleo sobre tela, c.i.d. 50,00 cm x 60,00 cm. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2023. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra4654/roda-de-samba>. Acesso em: 07 fev. 2023. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7

Figura 4: Dos Prazeres, Heitor. “Mulata”, óleo sobre madeira, c.i.d.,47,50 cm x 36,20 cm, Coleção Gilberto Chateaubriand – MAM RJ In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2023. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra4651/mulata>. Acesso em: 08 fev. 2023. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7

Textos

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Vídeos

HEITOR dos Prazeres. Direção Antônio Carlos da Fontoura. Rio de Janeiro: Produção Canto Claro, vídeo, (13 minutos) 1965, Publicado em 16 de set de 2014. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=-FgabF3G32s> Acesso em: 07 fev. 2023.

HELENA, Glaucea. MASP Palestra 2018 / Heitor dos Prazeres: protagonismo e arte, São Paulo (Capital), março de 2018. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=X9elDlYFYU0&t=1126s> Acesso em: 07 fev. 2023.

Sobre o autor:

Alexandre Ventura é professor de História da Arte no Cefart-FCS, graduado em História pela UFMG e mestre em História Social pela PUC-SP.