ASSOMBRO

Yara Tupinambá, Assombração, xilogravura, 96 x 64,5 cm, Acervo da Fundação Clóvis Salgado.

A memória pode ser definida de inúmeras formas, e nós, buscando mais um termo para compreender e dizer sobre ela, voltamos nosso olhar para a xilogravura “Assombração”, da artista mineira Yara Tupynambá. A imagem beira o abstracionismo e apresenta, à primeira vista, um fantasma, talvez um ser mí(s)tico, uma máscara que sai de dentro de uma capa, mas, em sua fantasmagoria, a imagem se torna difícil de descrever. As leituras possíveis são inúmeras, assim como as possibilidades da memória. Não é por coincidência que o trabalho faz parte da série “Lendas Brasileiras” da artista.

A obra foi realizada na época da ditadura civil-militar no Brasil, da repressão política, cultural e social. Yara não se mostra como uma artista política diretamente em sua obra, mas sua série sobre as lendas brasileiras, assim como muitos de outros trabalhos, trata de temas específicos do Brasil, o que por si só já traz uma sutileza política em seu trabalho.

A xilogravura é uma técnica de impressão milenar que grava um desenho na madeira e, depois, transfere a tinta para o papel formando uma imagem. O processo da xilogravura já é uma experiência do assombro, e o efeito da impressão a partir de uma matriz guarda similaridade com o espanto, pois a técnica da gravura diz de presenças ausentes: o espaço que se retira da madeira e que no papel é a parte sem tinta é o que realmente forma a imagem.

As assombrações são fragmentos de sofrimentos que vêm de nossas vivências. O fantasma é aquele que não está ali e, ao mesmo tempo, está. Sua presença é ausente, logo ressentida, pois incompleta. O que isso nos diz sobre a memória? Ela também está presente dentro de nós como um fantasma. O assombramento na obra é marcado por esse processo criador e se mantém na experiência estética. Notamos que, talvez, na obra de Yara, essa experiência se apoia na constatação de que em nossa memória existem lacunas e que somos assombrados por imagens e ideias vindas não sabemos de onde.

A feitura da xilogravura e os significados que a imagem nos traz e nos causa se encontram aqui: a presença e a não presença das memórias e dos espaços que compõem a gravura, ou o assombro que pode formar o ato de lembrar e o ato de retalhar a madeira para criar a imagem. A analogia com o distanciamento de uma existência que se desgarra da sua matriz mostra nessa obra que a impressão ganha lacunas. O traço na xilogravura é, assim, o vestígio de uma ausência e, ao mesmo tempo, a possibilidade de representação daquilo que foi escavado.

Os detalhes que costuram o manto da figura trazem uma dramaticidade que se espalha por todo o quadro, criando um ser amorfo e mitológico. Podemos conectar essa dramaticidade às imagens do expressionismo cinematográfico alemão, que, no contraste de luz e sombra, formava imagens trágicas e teatrais, emocionantes e espantosas, adjetivos que facilmente se aplicam à “Assombração” de Yara Tupynambá, uma obra atemporal em vários sentidos, devido tanto às manifestações repentinas do passado e do presente como ao preto e branco e às sensações que ele nos traz.

Os pontos que percorremos no texto se amarram em torno da obra e do título da série de que ela faz parte, “Lendas Brasileiras”. A lenda advém de narrativas que unem fatos reais com fantasia e que são transmitidas pela oralidade, ou seja, histórias preservadas pela memória coletiva e, geralmente, regional. É recorrente dentro das lendas brasileiras o terror que surge de seres mitológicos, como, por exemplo, da mula sem cabeça, e a obra de Yara traz essa característica do terror.

A nossa memória subjetiva e a coletiva, as lendas reais e irreais, a madeira retirada e a que permanece para criar a gravura correspondem à ideia da presença na ausência. Elementos que nos assombram e nos formam de diferentes maneiras, no caso da xilogravura, formam a imagem, mas as imagens também nos compõem. 

Assombrar mantém a relação entre a vida e a morte, afinal, o fantasma é aquele que não está vivo, mas que também não está morto e que surge, de repente, assombrando o presente. O artista, no ato de criação, abre a possibilidade de assimilar como autorretrato seu próprio ser e o da sua existência, enquanto a imagem do seu rosto é também uma memória de morte, à medida que o lembrar se esvai desfigurando as feições e as lembranças do passado, compreendendo-se, desse modo, a vida apenas como um rastro de um resto que não se apaga e que emociona e assombra.

Referências

Textos

DERRIDA, J. Do Espírito: Heidegger e a questão. Tradução de Constança Marcondes César. Campinas: São Paulo, Papirus, 1990.

DERRIDA, J. Mal de arquivo, uma impressão freudiana. Tradução de Claudia de Morais Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

HEDGECOE, John. O novo manual de fotografia: guia completo para todos os formatos. Tradução de Assef Nagib Kfouri e Alexandre Roberto de Carvalho. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2005. p. 118-120.

HUSSERL, E. Phantasy, Image Consciousness, and Memory (1898-1925). Tradução de John B Brough, University Washington, 2005. v. XI.

TUPYNAMBÁ, Yara. Escritório de arte.com – Biografia, críticas e depoimentos. Disponível em: <https://www.escritoriodearte.com/artista/yara-tupynamba>. Acesso em: 05 out. 2021. 

Vídeos

GLOBO HORIZONTE. Conversa com Yara Tupynambá. Publicado pelo Globoplay. Exibido em 13 de outubro de 2013. Disponível em: <https://globoplay.globo.com/v/2885740/?s=0s>. Acesso em: 03 Out. 2021.

CCBBBH. Yara Tupynambá – O Ouro de Minas. Publicado por Banco do Brasil em 12 de Ago. de 2021. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Ub-EFwFYqho>. Acesso em: 05 out. 2021.

Sobre os autores

Cecília Queiroz – Artista, graduada em Cinema e Audiovisual pela UNA e estudante no Curso Básico de Curadoria na Escola de Artes Visuais do Cefart/FCS.

Júnior Garcia – Fotógrafo; atualmente é aluno do Curso Básico de Curadoria da Escola de Artes Visuais do Cefart/FCS.

Rozângela Gontijo – Professora, doutora em Estética e Filosofia da Arte pela UFMG e estudante do Curso Básico de Curadoria da Escola de Artes Visuais do Cefart | FCS.