Cobra Norato: o que esta obra de Yara Tupynambá nos ensina sobre a cultura popular

Yara Tupinambá, Cobra Norato, xilogravura, 95 x 66 cm, Acervo da Fundação Clóvis Salgado.

A obra “Cobra Norato” de Yara Tupynambá é uma gravura com a técnica de xilogravura, ou seja, utilizando a madeira como matriz e um rolo de borracha embebida em tinta, a artista faz a impressão final em papel. Esse é um processo muito parecido com um carimbo. Trata-se de uma técnica bastante antiga, de provável origem chinesa, sendo conhecida desde o século VI. No ocidente, temos registros de seu uso a partir da Idade Média.

A lenda presente na obra é a de Cobra Norato, filho de uma índia e do boto-cor-de-rosa. A índia deu à luz a duas cobras: Honorato e Maria. Esses répteis eram seres encantados e foram deixados no Rio Tocantins. A população que via as cobras ao longe deu a elas os nomes de Cobra Norato e Maria Caninana. Enquanto Norato era bom e salvava quem estava em perigo nas águas, Caninana era o oposto, atacava as pessoas sem pena. Norato costumava visitar a mãe e frequentar os bailes da cidade, tal qual seu pai. Quando saía do rio, deixava a pele de cobra na margem e se transformava em homem. No fim da noite, colocava a pele de cobra e voltava para o rio. Com o tempo, Norato não queria mais ser cobra e, sim, inteiramente homem. Pediu a ajuda de várias pessoas para desencantá-lo, as quais não conseguiram, até que certo dia um soldado o auxiliou a se transformar em homem de forma definitiva. Então, a pele de Cobra Norato foi queimada e o rapaz passou a ser conhecido como Honorato, tendo vivido durante muitos anos no Pará, onde era querido por todos.

A imagem feita por Yara é monocromática (embora existam xilogravuras coloridas), sendo feita inteiramente com tinta preta, que contrasta com a brancura do papel no qual foi impressa. O uso de apenas uma cor dá à imagem, de certa forma, um aspecto “arrepiante”, fazendo jus a sua origem – afinal, “Cobra Norato” faz parte das manifestações culturais que caracterizam a identidade social de um povo. Muitas das lendas difundidas possuem um caráter assustador, mas com personagens que muitas vezes são exemplos de respeito, preocupação com o meio ambiente e outras características heroicas. Outras obras de Yara que seguem a mesma linha, como “Assombração” e “Negrinho do pastoreio”, também são baseadas em contos que são parte do patrimônio cultural imaterial brasileiro. Suas manifestações se dão das mais diversas formas, como o repasse, de geração em geração, das lendas em canções, danças, artesanatos, festas populares, brincadeiras, jogos e, claro, quadros, esculturas e performances de grandes artistas brasileiros.

Na imagem produzida por Yara Tupynambá podemos ver uma figura humana com longos cabelos esvoaçantes, mas que parece se virar levemente mostrando seu perfil, permitindo que os espectadores vislumbrem seu rosto. Seu corpo não tem cor uniforme: através dele perpassam traços em diversas direções, às vezes, linhas retas, outras circulares, o que permite que os espectadores imaginem se tal composição remete às águas do Rio Tocantins, lar da infância dos personagens da lenda, ou se tais sinais remetem à pele escamosa das cobras. Ao lado da figura, encontramos uma cobra com padrões em suas escamas semelhantes aos da pessoa que ocupa a maior parte do quadro e, no canto inferior direito, encontramos flores, remetendo à natureza rica e abundante da região. Seus olhos são órbitas pretas vazias e seus dentes são presas afiadas. A obra de Yara parece mostrar justamente o momento em que ocorre a transformação do corpo de cobra em corpo de homem na beira do rio. Ainda que não se tenha certeza se ele está se tornando homem, para andar em terra e conviver com outras pessoas, ou se está voltando da terra, para se transformar novamente em cobra, o semblante de Cobra Norato é triste, e seu tronco está voltado para o couro do réptil, de modo que é provável que esteja retornando ao rio e à sua forma de cobra. 

Apesar de, na história, Cobra Norato ser considerado bom, na gravura, sua imagem é aterrorizante, devido a seus dentes pontiagudos e à textura de sua pele, que é a mesma de seu couro de cobra, efeito que é acentuado pela tinta preta. Desse modo, se questiona: poderá ele algum dia se dissociar de sua forma de réptil? Será que o terror causado pela sua forma de cobra o perseguirá mesmo na sua forma humana? É possível que quem vier a conhecê-lo em sua forma totalmente humana não o associe à imagem da serpente, porém, devido aos anos vivendo como cobra, ele deve permanecer com a desconfiança e a força típicas desse animal. Ademais, trata-se de uma figura conhecida nos arredores do Rio Tocantins, de modo que a lenda já alimenta sua imagem de homem-serpente. A figura representa um corpo com traços femininos, aparentando ter seios volumosos e quadris proeminentes, o que traz o questionamento: seria essa a representação de Maria Caninana? Entretanto, a representação não condiziria com a lenda, já que Maria não se transformou em mulher. Em algumas versões, inclusive, teria sido morta pelo irmão, que, cansado das atrocidades cometidas por ela, teria lhe tirado a vida. 

É interessante também pensar na importância da representação dos mitos na cena artística. Alguns autores acreditam que a presença dos mitos amazônicos no modernismo brasileiro teria acontecido por conta do desejo de ampliação do pensamento estético consolidador da brasilidade. Esse comportamento teria colaborado para alimentar uma imagem de grandeza de um Brasil que precisa ser redescoberto pelos próprios brasileiros, o que, de certa forma, pode ter ajudado na difusão desses mitos, que muitas vezes perderam lugar, principalmente na nossa região Sudeste. Temáticas como a de “Cobra Norato” são importantes para a sedimentação de uma identidade artística brasileira, pois auxiliam na transmissão dos conhecimentos de geração em geração, deixando a cultura viva.

Para além do que se pode ver, é importante pensar no que a imagem proporciona sentir. Além de um conto, essa é uma história de provação do personagem principal, que cresce e amadurece em uma nova fase, tendo conseguido alcançar seus objetivos e sendo uma espécie de “bom exemplo a ser seguido”, afinal, precisamos de histórias que nos motivem a buscar nossos sonhos. Além disso, Cobra Norato busca representar a harmonia entre os seres e a natureza, que são complementares – um tema que merece ser mais explorado em nossa sociedade, que tanto destrói e desmata.

Referências

‌CRUZ, Benilton. Cobra Norato: a educação do herói pelo rio. Amazônia Latitude, 26 de março de 2019. Disponível em: <https://amazonialatitude.com/2019/03/26/cobra-norato-a-educacao-do-heroi-pelo-rio/>. Acesso em: 4 out. 2021.

MEMÓRIA Viva de Câmara Cascudo. Memoriaviva.com.br. Disponível em: <http://www.memoriaviva.com.br/cascudo/cobra.htm>. Acesso em: 8 out. 2021.

‌O BESTIÁRIO do Folclore Brasileiro por Câmara Cascudo: M’boitatá, Cobra Norato e Maria Caninana, os Filhos de Yig para Chamado e Rastro de Cthulhu. Donjon Master. Disponível em: <http://donjonmaster.blogspot.com/2018/07/o-bestiario-do-folclore-brasileiro-por_25.html>. Acesso em: 8 out. 2021.

ZILIO, Carlos. A querela do Brasil: a questão da identidade da arte brasileira. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999.

Sobre as autoras

Lorena Marcelino é geóloga graduada pela UFMG, redatora e estudante no curso básico de curadoria na Escola de Artes Visuais do Cefart | FCS. 

Sâmmya Dias é artista, graduanda em Direito pela UFMG e estudante no curso básico de curadoria na Escola de Artes Visuais do Cefart | FCS.